www.sabado.ptMariana Esteves - 29 abr. 08:22

Este é o debate que devíamos estar a ter

Este é o debate que devíamos estar a ter

Opinião de Mariana Esteves

Nas últimas semanas temos assistido a uma troca de acusações entre o ex-líder do PSD, Pedro Passos Coelho, e o ex-líder do CDS, Paulo Portas, sobre quem gostava mais ou menos da Troika. Eu digo-vos quem não gostou mesmo nada: a economia portuguesa.

Quando a crise financeira de 2008 atingiu as dívidas soberanas na Europa, o consenso dominante era que apenas com medidas de austeridade seria possível recuperar as economias em crise. Como consequência, foram aplicadas em vários países, incluindo Portugal, medidas pró-cíclicas que acentuaram a crise, sufocaram quem vivia de rendimentos do trabalho e comprometeram a economia nacional até hoje.

Portugal é hoje um país de salários baixos – mais de metade dos trabalhadores por conta de outrem recebem menos de 1000€ brutos por mês - e empregos precários - um em cada cinco tem contratos a termo ou de curta duração. A direita acredita que isto se deve ao excessivo peso da carga fiscal sobre as empresas. No entanto, a carga fiscal em Portugal está abaixo da média da União Europeia, exceto para o IVA, como mostra o estudo do economista Alexandre Mergulhão, divulgado no final de 2023. Na verdade, o que está por trás da estagnação do salário real não é a carga fiscal excessiva, mas sim duas políticas adotadas nos anos da Troika: o enfraquecimento dos sindicatos e a desregulação laboral.

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Este último ponto era um pilar central do Memorando de Entendimento, assinado entre a Troika e o governo de Passos Coelho. O objetivo era dar às empresas maior flexibilidade "para fazerem convergir os custos de trabalho e a produtividade". Na prática, o que aconteceu foi o oposto: entre 2013 e 2022, o aumento da produtividade real (18,7%, em média) tem sido quase sempre superior ao aumento dos salários (10,6%, em média). Se analisarmos estes números por setor, constatamos que o turismo é dos que apresenta maior diferença entre produtividade e salários. Apesar do crescimento exponencial na última década, a força de trabalho do setor continua a receber salários 30% abaixo da média da economia.

Quanto ao enfraquecimento dos sindicatos, não se pode dizer que é uma novidade deste século. Dados da OCDE mostram que, entre 1978 e 2016 a taxa de sindicalização diminuiu 45,5 pontos percentuais. Se no pós-25 de abril havia em Portugal 60% de trabalhadores sindicalizados, no início do século XXI eram apenas 20%. Esta taxa manteve-se estável entre 2002 e 2010 e, após 2011, a queda recomeça até apenas 15% de todos os trabalhadores estarem sindicalizados. Para estes níveis historicamente baixos de sindicalização, contribuíram a desregulação das relações laborais, cada vez mais precárias e sem perspetivas de futuro, mas também o enfraquecimento da contratação coletiva que constava do Memorando.

Podem estar a pensar que os salários de facto são baixos, mas a produtividade da economia portuguesa também não é famosa. Têm razão. Para agravar a situação, depois da crise, a economia portuguesa especializou-se predominantemente em setores de baixo valor acrescentado, assentes em baixos salários e contratos precários, como é o caso do turismo e de todas as atividades a este associadas como a restauração e o imobiliário. Estes setores são também particularmente vulneráveis a choques externos, como a pandemia. Simultaneamente, foi abandonada qualquer política industrial, de investimento em setores com alto valor acrescentado.

Em 2024, pouco importa discutir quem era mais ou menos fã das ideias da Troika. Importa perceber o impacto que estas tiveram e ainda têm hoje na economia portuguesa. Importa perceber a importância do poder negocial dos trabalhadores e da regulação laboral, tanto ao nível da criação como da distribuição de riqueza. Importa imaginar um país para lá da monocultura do turismo, dos baixos salários e da precariedade. Este é o debate que devíamos estar a ter.

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