visao.ptSARA SANTOS - 17 abr. 08:30

Visão | Sebastião: o filho da Serra-Mãe

Visão | Sebastião: o filho da Serra-Mãe

Vivo em Setúbal há quase cinquenta anos, por isso não podia deixar de gostar de Sebastião da Gama (1924-1952), o poeta, e da sua circunstância, a Serra da Arrábida, ou Serra-Mãe, como lhe chamou na sua primeira obra (Lisboa: Portugália Editora, 1945)

Porque gosto do trovador arrabidino tive a ousadia de o transformar em personagem dum romance que publiquei em 2010 – “Fado: a torcer o destino” (Lisboa: Novos Autores, 2013). Porque gosto da “Serra Mãe” publiquei em 2019 um livro de poemas inspirado nela – “Vestígios de azul” (Lisboa: Calipso).

Passam agora cem anos sobre o nascimento de Sebastião Artur Cardoso da Gama, em Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal. Morreu muito jovem, aos 27 anos, cerca de um ano depois de casar, vitimado por uma tuberculose real de que sofria desde a adolescência, mas apesar disso deixou obra poética relevante, ligada à Serra da Arrábida, onde viveu e onde escrevia poemas como quem colhe flores.

O poeta passou a viver no terreno, onde se fixou por recomendação médica, e assim lhe conheceu as belezas, recantos e fragilidades. Por isso a sua consciência ecológica levou-o a escrever em 1947 a diversas autoridades públicas e personalidades a fim de solicitar a defesa daquele maciço montanhoso, daí resultando a criação da Liga para a Protecção da Natureza logo no ano seguinte, e que veio a ser a primeira associação ambientalista portuguesa.

A sua obra não é muito vasta, até porque morreu muito novo, e parte dela só foi publicada postumamente. Mas destacaria apenas dois poemas que podemos ler na sua “Antologia Poética”. O primeiro é o “Pequeno Poema”:

Quando eu nasci,

ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,

nem o Sol escureceu,

nem houve estrelas a mais…

Somente,

esquecida das dores,

a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,

não houve nada de novo

senão eu.

As nuvens não se espantaram,

não enlouqueceu ninguém…

Pra que o dia fosse enorme,

bastava

toda a ternura que olhava

nos olhos de minha Mãe…

No dia do seu aniversário, Sebastião dedicou “Madrigal”, uma das mais bonitas declarações de amor, a Joana Luísa:

A minha história é simples./A tua, meu Amor,/é bem mais simples ainda:

“Era uma vez uma flor./Nasceu à beira de um Poeta…”

Vês como é simples e linda?

(O resto conto depois;/mas tão a sós, tão de manso/que só escutemos os dois).

Conheci Joana Luísa, o amor da sua curta vida e o padre que os casou, um homem bom e simples, o que ainda vem reforçar mais todo o ambiente que rodeia a vida do poeta e a sua obra. Poderíamos talvez caracterizar a sua vida e obra deste modo: uma tremenda e quase chocante simplicidade, uma franqueza transparente de sentimentos, um espanto face à impactante beleza natural que o rodeava (“Pelo sonho é que vamos/comovidos e mudos”).

Mas para compor o quadro, não podemos esquecer um certo toque de dramatismo romântico que decorre da sua doença e morte prematura, como sempre acontece com aqueles que partem ainda em plena juventude.

O “Poeta da Arrábida”, como era universalmente conhecido, foi agraciado a título póstumo, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em 1993 pela presidência da república.

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