expresso.ptNina de Sousa Santos - 18 abr. 17:29

Afinal para que servem as Unidades Locais de Saúde? Longa vida para as ULS? 6 lições para apoiar a nova equipa ministerial da saúde

Afinal para que servem as Unidades Locais de Saúde? Longa vida para as ULS? 6 lições para apoiar a nova equipa ministerial da saúde

Julgamos ser prudente e responsável manter as ULS e apostar na construção de uma cultura organizacional coesa para a gestão profissional do SNS

O grande objectivo das diversas estratégias de gestão hospitalar que desde a criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979, foram sendo introduzidas em Portugal, ao longo do tempo, pelos partidos políticos que se sentaram na João Crisóstomo, tem sido sempre a melhoria do acesso aos cuidados de saúde e a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde prestados. Agora, são as Unidades Locais de Saúde (ULS) uma medida de cosmética governativa, ou uma oportunidade de salvação do SNS?

O modelo das ULS foi introduzido em 1999, enquadrado num movimento internacional de melhoria da gestão dos cuidados de saúde e aplicado em Matosinhos. Basicamente, este modelo implica integrar na gestão do hospital também a gestão dos centros de saúde da respetiva área de influência de modo a facilitar a integração de cuidados de saúde prestados, designadamente, ao nível da gestão de altas, taxas de reinternamento, complicações, taxa de ocupação, entre outros indicadores.

Mais tarde, em 2007, foi criada a Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano, em 2008, foram criadas a ULS do Alto Minho, a ULS do Baixo Alentejo, e a ULS da Guarda, e em 2009 a ULS de Castelo Branco, em 2011 a ULS do Nordeste, e em 2012 a ULS do Litoral Alentejano. Oito no total. E de repente, e sem grande discussão técnica, este modelo está em vigor em todo o nosso País, desde 1 de janeiro de 2024!

A “pioneira” ULS de Matosinhos levou tempo a provar que funcionava, como comprovam estudos, mais recentes, que demonstram que o “valor” existe. Contudo, todas as experiências nesta matéria ensinam, de acordo com as teorias de gestão das organizações, que leva tempo a alcançar-se esse valor. Efetivamente, um estudo de 2016 sobre a ULS de Matosinhos (The Importance of Time in Developing a Boundaryless Hospital: An Example from Northern Portugal, Springer) destaca precisamente a importância do tempo como factor fundamental no desenvolvimento e construção de uma cultura sólida de trabalho colaborativo, de resolução de problemas, e de compreensão das necessidades dos diversos intervenientes de uma organização de saúde que abrange a complexidade dos cuidados hospitalares e a integralidade dos cuidados primários. O estudo aponta que, depois de 16 anos de esforço, a ULS de Matosinhos pode ser considerado um exemplo inspirador de como o investimento a longo prazo e o compromisso com a integração e a qualidade podem conduzir a resultados significativos, conseguiu melhorar a referenciação e reduzindo as admissões hospitalares.

Daqui retiramos as duas primeiras lições: a primeira decorre do facto de que, mesmo que as ULS sejam uma medida de cosmética governativa, será com certeza uma oportunidade de melhorar o funcionamento do SNS, se devidamente enquadrada com equipas de gestão de qualidade e com os recursos financeiros para manter esta opção de gestão, do que estar a introduzir mais alterações ao nível da organização dos serviços; a segunda lição é que uma ULS é uma solução de médio-longo prazo, logo leva tempo a chegar ao seu potencial, e sabemos que criar confiança, muitas vezes, demora mais tempo do que o mandato de uma legislatura.

A criação das ULS possui aspectos positivos, porquanto visa uma abordagem mais abrangente, articulada e coordenada na gestão dos serviços de saúde, reconhecendo a importância da integração e da continuidade dos cuidados para a promoção da saúde e a optimização de uso de recursos. Este modelo visa uma resposta mais eficaz às necessidades de saúde da população através do uso de mecanismos de gestão alinhados com os modelos de governação clínica, garantir uma real articulação entre os diferentes níveis de cuidados e uma utilização mais eficiente dos recursos disponíveis. Mas este desígnio não é fácil, nem imediato, e jamais se alcançará por simples diploma legal.

Portanto, a terceira lição a reter é que as ULS podem ter efeitos positivos, e apesar da sua aplicação padronizada ao território nacional continental, sem ter em consideração as especialidades de cada região (e com o eventual desaparecimento das ARS), o modelo encontra-se longe de se poder considerar esgotado, na medida em que a sua implementação ainda agora se iniciou.

É absolutamente essencial que em todos os níveis da cadeia de prestação de cuidados de saúde, desde a tutela até ao mais inóspito centro de saúde, estejam profissionais competentes, motivados e capacitados com os meios necessários, uma boa e velha receita, nem sempre fácil de implementar.

Deste modo, para que as ULS possam cumprir plenamente o seu propósito, é essencial disporem de profissionais com competências de gestão, liderança e humildade, capazes de envolver as suas equipas na organização criteriosa e holística que se exige. Os gestores das ULS enfrentam hoje sérios desafios, incluindo a coordenação de serviços sem tradição de articulação permanente e cooperante, orçamentos limitados, escassez de médicos em várias especialidades, profissionais de saúde desmotivados e, em termos gerais, frequentemente desinteressados na mudança, urgência na promoção da inovação, para além das questões do dia a dia, consumidoras de tempo precioso.

Ao nível das equipas, a quarta lição é que é fundamental contratar gestores capazes que tenham condições de motivar profissionais de saúde, o que não depende apenas de dinheiro, nem de tempo. Exige principalmente experiência e bom senso.

Por outro lado, muitas vezes esquecido, é essencial ressaltar a importância crítica dos sistemas de informação para o funcionamento de uma organização complexa como uma ULS, na integração dos serviços hospitalares, de cuidados primários e outros parceiros privados de saúde, que desempenham um papel fundamental na comunicação e partilha de dados entre os diferentes níveis de cuidados, permitindo uma abordagem ao doente completa, cuidada, e sem perder a humanização. A utilização da telemedicina e de outros meios de saúde digital, como a monitorização de doentes em casa, tem vindo a afirmar-se positivamente, reforçando a sua autonomia e participação. As diversas indústrias têm vindo a digitalizar-se, enquanto a saúde está a ficar claramente para trás. A transformação digital dos serviços de saúde é uma excelente oportunidade para o SNS, para o envolvimento dos doentes e das famílias, e sobretudo de o verdadeiramente tornar sustentável.

O processo de digitalização das ULS, que depende mais da capacidade de inovação e de re-organização de serviços, do que com tecnologia, é a quinta lição a tirar. Entre as condições a proporcionar para o bom funcionamento do sistema de saúde, os sistemas de informação são hoje um aliado imprescindível na eficácia, fiabilidade, transparência e gestão dos recursos.

As ULS ao serem herdeiras dos Agrupamentos de Centros de Saúde, em funcionamento deste 2010, que têm sido essenciais na implementação das estratégias de cobertura universal promovidas pela Organização Mundial de Saúde, levados à evidência científica pela Prof. Barbara Starfield, e largamente reconhecidos pelo seu impacto na prevenção e promoção da saúde das comunidades, e envolvimento das populações, devem também ser capazes de manter esta missão determinante, designadamente, na resiliência da Saúde Pública e na prevenção de uma eventual próxima pandemia.

Uma sexta, e última, lição a tirar é que pode haver necessidade de desenvolver novas competências pela ULS, agora que dispõe de uma equipa mais alargada e diversificada, designadamente, ao nível das competências dos seus profissionais que compreenda mais a lógica da saúde que da doença.

Em síntese, julgamos ser prudente e responsável manter as ULS e apostar na construção de uma cultura organizacional coesa para a gestão profissional do SNS. Dotar as ULS de boas equipas e melhores políticas de valorização dos profissionais de saúde, integrar sistemas de informação e melhorar a qualidade dos cuidados de saúde prestados e mais próximos das populações. É também essencial que as promessas eleitorais vão sendo cumpridas, e possuirmos uma tutela do sector sem agenda a não ser esta, com destreza para adaptação à nova realidade, que exige flexibilidade para fazer acordos e habilidade para obter consensos.

Tudo isto requer tempo para se desenvolver e consolidar, ou seja o esperado impacto positivo das ULS vai levar o seu tempo a concretizar-se.

Tudo isso é necessário para dar a Portugal um SNS sustentável, transparente e humano.

O escorpião e o sapo precisam entender-se, ou extinguem-se em simultâneo, e levam com eles o SNS, que é uma das maiores conquistas da nossa democracia. Um SNS sustentável que possa contribuir para um Portugal mais saudável é o que mais importa.

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