expresso.ptRui Lage - 18 abr. 19:29

Os campos que Abril libertou

Os campos que Abril libertou

Ao contrário de outras revoluções, feitas pelo campesinato, ou em seu nome, a nossa Revolução não teve nos camponeses protagonistas centrais. O isolamento, o analfabetismo e a penúria não eram de molde a engendrar sujeitos políticos. Contudo, há cinquenta anos, nenhum país carecia tanto de uma Revolução como o Portugal rural

São da cidade as imagens e os sons da Revolução. É da cidade o povo que saúda a liberdade resgatada ao desterro, nas ruas, nas praças, nas avenidas. É na cidade boquiaberta que comungam os capitães, os soldados, os políticos, os jornalistas, os ativistas, os mirones, na cenografia de prédios e quartéis, comércios e palácios, varandas e arcadas, no meio de carros, motas, camionetas, blindados.

Dos campos vieram os cravos rubros para entupir os fuzis. Dos campos se colhia também a flor da juventude para que fosse matar e morrer no Ultramar. .

A ditadura mitificava o campo com a sua propaganda telúrica, o seu provincianismo programático. Exaltava-se a “beleza patriarcal” das aldeias, povoando-as de rústicos obsequiosos e felizes, gratos por serem pobres, porque serem pobres significava que viviam investidos de autenticidade, bondade e harmonia, numa espécie de Éden agrícola. A pobreza e o trabalho penitencial aprimorava-lhes o caráter. Foi esta a ignóbil mentira fabricada e publicitada pelo regime para mascarar a pobreza, a doença, a morte precoce, a infância interditada, a insalubridade, a indignidade habitacional.

Sob o reboco do pitoresco e do folclorismo, que o clero e os caciques mantinham fresco, jazia um campo atrasado, ensimesmado, analfabeto, pauperizado. Era um mundo socialmente calcificado, refém de arcaísmos técnicos e mentais. O jornaleiro era sempre um pedinte em potência, a um pequeno passo da miséria. No Inverno, “a fome sentava-se à mesa como pessoa da casa” (lê-se num inquérito do Ministério da Agricultura, de 1943, citado por Maria Filomena Mónica no seu Os Pobres). Nos maus anos agrícolas, a fome conspirava com as epidemias para quebrar os malnutridos. Nalguns lugares, padecia-se e morria-se de doenças erradicadas no início do século XX.

Nos anos 50, a sobre-exploração dos solos e a pressão demográfica ditaram a “fuga das gentes”, como lhe chamou Vitorino Magalhães Godinho, esvaziando as aldeias. Em duas décadas, a percentagem da população ativa empenhada no cultivo da terra passa de 44%, em 1950, para 28%, em 1973, no vestíbulo da Revolução.

O responsável pelo departamento de agricultura da Comissão Dinamizadora Central, a estrutura das Forças Armadas incumbida de cimentar a aliança entre o povo e o MFA, testemunhou, em aldeias da Beira Alta, “situações de tal ordem desumanas que não era possível escamotear, não era possível admitir que existissem neste século” (recolhido por Sónia Vespeira de Almeida, em “Vítimas do fascismo: Os camponeses e a dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas”, 2008).

Muitos camponeses viviam em casas de chão térreo, em bom rigor covis, não só a meias com o gado, mas como gado. A maioria consumia a sua existência num labor inclemente, extenuante, com jornadas que atingiam as quinze horas, sem folgas ou férias. Eram velhos aos trinta anos. Suavam de sol a sol por uma malga de caldo ou um naco de pão duro, com a lucidez cruel de quem sabia os filhos guardados para fado igual. As crianças andavam descalças, vestidas de trapos, subnutridas, coagidas aos duros trabalhos agrícolas. Cresciam ao deus-dará, “entre os porcos, nas vielas, nos pátios, por toda a parte”, diz-nos Ferreira de Castro (Terra Fria). E que dizer das mães acostumadas na morte precoce das suas crianças, no isolamento das serras e dos plainos, sem estradas dignas desse nome, sem telefones, quase sem assistência? As crianças, as “pobres crianças das aldeias”, lamentava o médico de província Fernando Namora, eram as “vítimas prediletas da sabença das comadres, da miséria e do desleixo” e “só nos aparecem quando os seus olhos doces e tristes começam a turvar-se e o choro se transforma num vagido” (Retalhos da Vida de um Médico). E que dizer das mulheres no seu milenar apoucamento e semi-servidão, trabalhadoras do lar e do campo, sem voz e sem retribuição, de que dá testemunho Maria Teresa Horta nas suas Mulheres de Abril?

Vi, com empatia, as marchas motorizadas dos agricultores europeus em protesto contra o arsenal burocrático de Bruxelas e a deterioração dos seus rendimentos, no início do ano. Mas o meu pensamento teimava em resvalar para o purgatório que era, há meio século, a verdadeira vida no campo.

Com a Revolução de 74, vieram prestações sociais e veio o salário mínimo para os agricultores. Aos poucos, a sementeira de Abril dava a colher as pensões rurais, o abono de família, os cuidados providenciados pelo SNS, o apoio à terceira idade, os progressos na alfabetização, a eletrificação, o encurtamento das distâncias com melhores vias e meios de transporte.

Filho e neto de transmontanos, foi nos campos, em criança, que eu vi o rescaldo da penúria que o Estado Novo tinha omitido ou mascarado. Trago os homens e mulheres que então vi, os seus rostos, os seus nomes, os idos e os vivos, a cicatrizar por dentro. Brinquei, descalço, com os seus filhos, na palha, na lama, no pó.

São da cidade as imagens e os sons da Revolução de 1974. Mas, nos cinquenta anos da Revolução, as minhas palavras são para os campos que Abril libertou, para o que sobra deles e para os que neles sobram, para os camponeses e camponesas por cujo passado ainda estremeço.

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