ionline.sapo.ptMário João Fernandes - 18 abr. 16:41

Direito Internacional Público e futebol

Direito Internacional Público e futebol

A liberdade de opinião é um valor estimável mas nenhum de nós aceitaria apenas o uso de tal liberdade, desacompanhada de formação, no momento de decidir da necessidade de trepanação da respectiva caixa craniana.

Já em muitas outras matérias assistimos a um esmagador domínio da liberdade de opinião sobre a formação científica ou até sobre o mínimo de informação validada que permita uma discussão racional. A multiplicação de “opinadores” generalistas (“tudólogos”) que fazem a mediação da informação nos órgãos de comunicação social está a atingir em Portugal um nível doentiamente perigoso.

O episódio recente do assalto ao navio MSC Aries e o respectivo tratamento mediático é exemplar dos perigos deste método de ocupação de tempo de antena.

Vários “opinadores” referiram o assalto ao navio como sendo um acto de pirataria. A pirataria está definida há muito em sucessivas convenções internacionais, a mais recente das quais, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (conhecida como Convenção de Montego Bay, CMB). O respectivo artº 101º tipifica os actos de pirataria como sendo cometidos para “fins privados”. A pirataria exige um animus furandi, uma intenção de roubo com propósitos de enriquecimento. A pirataria não se confunde nem com os actos de terrorismo com fins políticos, nem com os actos de fiscalização praticados pelos Estados. A necessidade de punir os actos de depredação de navios não motivados por propósitos de enriquecimento levou à negociação e celebração da Convenção sobre a supressão de actos ilícitos contra a segurança da navegação marítima de 1988 (Convenção SUA).

Também os actos de violência praticados por um Estado (por via dos seus agentes, como são os Guardas Revolucionários Islâmicos do Irão na sua componente naval) contra navios batendo o pavilhão de um outro Estado não são actos de pirataria. A CMB permite aos Estados, no alto mar ou em qualquer outro lugar não submetido à jurisdição de qualquer Estado, o apresamento de navios piratas ou na posse de piratas. Fora deste contexto o Estado costeiro (como é o caso do Irão no Golfo Pérsico e no Mar da Arábia) pode, no seu mar territorial e na Zona Económica Exclusiva, exercer determinados poderes de fiscalização. Nos estreitos utilizados para a navegação internacional (como é o caso do estreito de Ormuz) prevalece a liberdade de navegação, concretizada no direito de passagem em trânsito, contínuo e rápido.

O apresamento em águas internacionais, manu militari, de um navio batendo pavilhão português (como é o MSC Aries) é um acto que viola flagrantemente o Direito Internacional, quer o costumeiro, quer o codificado, e como tal gerador de responsabilidade internacional por parte do Estado que o praticou (o Irão que não sendo parte na CMB está obrigado a respeitar o costume internacional em matéria de direito de passagem em trânsito).

O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, Nasser Kanani, numa conferência de imprensa, informou no dia 15 de Abril: "O navio foi direcionado para águas territoriais iranianas devido à violação dos regulamentos marítimos internacionais e à falta de resposta às autoridades iranianas". A referência parece ser feita à Convenção sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar, de 1972 (COLREG). Pela boca do Embaixador do Irão em Lisboa, em declarações à RTP, já se viu o incidente qualificado como “engano” e como justificado por ter sido desligado o “Automatic Identification System” (AIS) do MSC Aries. O AIS pode ser exigível em zonas onde existam “Vessel Traffic Services” (VTS) commumente referidos como esquemas de separação de tráfico marítimo (como acontece em vários pontos da costa portuguesa) que visam evitar colisões e assegurar a fluidez do tráfico. Mas as autoridades iranianas também sabem que o AIS é a principal fonte de informação dos piratas (nomeadamente na Somália e no Golfo da Guiné), dos Houthis (que são um Governo de facto que declarou guerra aos navios mercantes e de guerra de vários Estados) e de todos os grupos terroristas que pretendam atacar navios. O desligar temporário do AIS, em pleno dia e com excelentes condições de visibilidade, é uma prática corrente em zonas de risco como é aquela em que o MSC Aries foi ilicitamente apresado.

NewsItem [
pubDate=2024-04-18 17:41:18.0
, url=https://ionline.sapo.pt/artigo/812601/direito-internacional-p-blico-e-futebol?seccao=Opiniao_i
, host=ionline.sapo.pt
, wordCount=643
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_04_18_661530641_direito-internacional-publico-e-futebol
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]