visao.ptSARA NUNES - 18 abr. 10:40

Visão | A minha luta contra a censura literária

Visão | A minha luta contra a censura literária

Comecemos pelo Mein Kampf. Dados os indiscutíveis argumentos sobre a sua proibição, por que motivo um livro como este não deveria ser censurado? A resposta resume-se a uma palavra: História. Ampliando-a numa pergunta: se proibimos o acesso a obras que pavimentaram o caminho para uma das maiores tragédias da Humanidade, como garantir que não aprendamos com os erros do passado para que não os repitamos no futuro?

Uma vez, envolvi-me num debate com um leitor que se mostrava indignado por encontrar, em diversas livrarias, o livro Mein Kampf, escrito por Adolf Hitler. As suas alegações não eram, claro, desprovidas de razão: como uma espécie de bíblia nazi, esta obra abriu caminho para as incontáveis perversidades perpetradas pela Alemanha na II Guerra Mundial e, ainda hoje, serve de base para ideologias extremistas perigosas. Porque, então, um livro como este não deveria ser proibido?

Eis que entra em cena um dos mais polémicos e delicados debates culturais dos nossos tempos: a censura literária moderna num tipo de renascimento do tenebroso Index Librorum Prohibitorum (a lista de livros proibidos da Inquisição).

A literatura, afinal, serve justamente para nos abrir a mente, mostrando mundos utópicos e distópicos para que consigamos construir um futuro mais harmonioso para todos. Se eliminarmos o contraditório, o acesso a uma visão qualquer – seja a distópica ou a utópica – eliminamos também a base para a formação de qualquer raciocínio crítico eficaz, que use os erros do passado como vacina contra a sua propagação.

O uso do Mein Kampf para ilustrar este artigo, eu sei, pode ser exageradamente polémico: poucas ideologias foram tão pavorosas como a nazi. Mas há inúmeros exemplos. O Triunfo dos Porcos, um clássico de George Orwell, é proibido nos Emirados Árabes Unidos por ter porcos como personagens principais – o que contraria, segundo os censores, os valores islâmicos. Ulisses, de James Joyce, é proibido no Irão por conter trechos obscenos. O que está a acontecer ao meu corpo?, uma espécie de guia sobre a puberdade, foi proibido e retirado de dezenas de bibliotecas no estado do Texas, EUA, sob a alegação de “induzir crianças a pensamentos sexuais”. Uma versão ilustrada do Diário de Anne Frank foi proibida em escolas da Florida por apresentar uma versão diferente da “tradicionalmente aceite” sobre o Holocausto (seja lá o que isso queira dizer). No Brasil, diversas prisões proíbem a entrada de qualquer livro que não seja a Bíblia ou que não se encaixe como autoajuda.

Dependendo do país, da ideologia e dos políticos dominantes, a lista de censura literária em pleno século XXI é imensa e inclui desde títulos mais polémicos (como o

já citado Mein Kampf, de Hitler, ou Lolita, de Nabokov), a clássicos como Alice no País das Maravilhas e a Odisseia, de Homero.

Todos os censores, em todos os países, alegam razões que variam entre a religião e a ordem social. Todos creem ser protetores indispensáveis das suas civilizações. Todos acreditam que, sem o seu controlo sobre o conhecimento, reinaria o mais absoluto caos.

Mas nenhum argumento pró-censura resiste a duas simples questões que todos deveríamos fazer: Somos todos realmente tão intelectualmente limitados ao ponto de não conseguirmos escolher, por conta própria, os livros que queremos ler, sem imediatamente nos transformarmos em psicopatas descontrolados? O que é mais perigoso para a Humanidade: o conhecimento que ela mesma produziu ao longo de sua história ou a capacidade de alguns poucos, eleitos ou não, decidirem sobre o que todos nós podemos ou não ter acesso?

A História já nos mostrou incontáveis vezes que o perigo maior nasce, justamente, das tentativas de se controlar o pensamento alheio. Se há, portanto, alguma coisa que pode e deve ser censurada, é a censura em si.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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