expresso.ptexpresso.pt - 29 abr. 06:56

O QI baixa conforme os centímetros da roupa diminuem?

O QI baixa conforme os centímetros da roupa diminuem?

Uma coisa é certa: o QI não diminui conforme os centímetros diminuem. Assim, nenhuma rapariga com decote tirará, apenas por esse pormenor, uma nota menor do que uma rapariga com camisola de gola alta. No máximo, uma delas terá frio e a outra calor

Na mesma semana do 25 de abril, chegou-nos a notícia de que há uma suposta proibição de “decotes excessivos” e “calções curtos” no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa.

O email com o novo código de vestuário foi assinado pela diretora Maria do Rosário Andorinha e proíbe “calções curtos, decotes excessivos e calçado de praia”.

Se as regras não forem cumpridas durante os exames nacionais os alunos podem mesmo ser proibidos de os realizarem.

É impressionante como após 50 anos da nossa libertação do fascismo, a mulher continua a ser vigiada pelo seu decoro, ou suposta falta dele. Antes do 25 de Abril, muitas profissões eram proibidas para as mulheres, nomeadamente na magistratura, carreira diplomática e carreira administrativa. Agora, em 2024, as curtas roupas e “decotes excessivos” podem impedir jovens de realizar exames, no referido liceu.

Ora, tenho muitas perguntas:

A partir de que ponto podemos, de uma forma universal, assumir que um decote é “excessivo” e uns calções são “demasiado curtos”?

Vai haver uma régua específica que dite limite mínimo de centímetros para a roupa? Limite máximo de decote?

Serão tidas em conta as diferenças de altura? Porque um decote de 10 cm em quem mede 1,5m é diferente do que em quem mede 1,8m.

Serão criadas fórmulas para fazer o cálculo?

Acima de tudo, fica a minha pergunta: O QI baixa conforme os centímetros da roupa diminuem? Por cada uso de top com decote, o QI desde 2 pontos, é isso?

Vamos lá recapitular o que mudou com o 25 de Abril de 1974 para as mulheres:

A mulher casada deixou de ter estatuto de dependência do marido. Relativamente ao poder parental, a mulher deixou de deter apenas uma posição secundária de mera conselheira para deter poder de decisão pleno em igualdade de circunstâncias com o marido. (Plataforma Direitos das Mulheres).

No entanto, no ano 2024, 50 anos depois, há gente a defender que a roupa decotada das raparigas pode desestabilizar o exame dos jovens rapazes. Como se a sexualidade dos rapazes fosse inegável e aceitável como naturalmente presente, mas o corpo das mulheres, objetificado, fosse sempre culpado da atenção que recebe, tendo, então, de ser escondido, para ‘garantir’ que não é alvo de assédio sexual (como se as mulheres tivessem o poder de decidir se são assediadas ou não) ou de distração. Então, as escolhas de roupa das jovens raparigas deixam de ser livres, devido à sexualidade dos rapazes? Não adianta usar o masculino universal a dizer que é para “os alunos”, toda a gente sabe que se trata das raparigas e os próprios alunos dizem que “o controlo das roupas já acontece há vários anos e que há distinções entre rapazes e raparigas.” Claro, nem me surpreende.

Há pessoas que estão a argumentar que esta medida protege raparigas de possíveis assédios sexuais. No entanto, este argumento é logo deitado por terra com uma pesquisa fácil e eficaz sobre mulheres com burca vítimas de assédio e violadas. Mais ainda, recentemente, numa exposição intitulada “What were you wearing?”, podemos ver a roupa que as mulheres estavam a vestir quando foram vítimas de assédio sexual e ler as histórias reais. Garanto que não houve medições de decotes e comprimentos de calções visto que a enorme maioria da roupa era roupa considerada corriqueira, com saias compridas, calças, sem decotes, e até uniformes. Inclui, até, uma fralda. Infelizmente, há bebés que são violados e, garantidamente, não é pelas suas ‘escolhas’ de roupa.

“I was still in baby diapers when I was raped by a 24 year old. I was raped several times between ages 2 and 5”. — testemunho que pode ser lido no site da exposição.

As vítimas nunca são culpadas, mas sim as pessoas agressoras. A roupa nunca é culpada, ou a escolha da roupa, mas sim quem agride e assedia.

Assombrada com esta ideia de, mais uma vez, ver a existência das mulheres e a sua vida pautada conforme as representações masculinas da sociedade, pensei em como, efetivamente, há pessoas que pensam que vestir de forma mais conservadora protege as mulheres. E porquê? Porque lhes dá uma sensação de controlo: “se eu me precaver, não vou ser assediada/violada”, “se a minha filha tiver cuidado, isto não lhe acontece”. Foi então que me lembrei do livro “Sexual Revolution” de Laurie Perry, em que a autora conta que tem uma familiar que “acredita que as pessoas que são agredidas sexualmente deveriam, simplesmente, ter tido mais cuidado”. Perry comenta, então, que suspeita que esta crença se deve ao facto de que traz mais conforto à familiar dela e uma sensação de controlo pensar que há algum tipo de escolha envolvida: se a vítima tivesse tido mais cuidado, teria tido o poder de impedir o assédio/violação (pág. 35).

Este tipo de raciocínio é a procura ávida de uma sensação de proteção e controlo sobre a própria vida e das pessoas que se ama, querendo rejeitar ao máximo a possibilidade real, imprevisível, e incontrolável de algo terrível como uma violação ou assédio acontecer. Atrever-me-ia, até, a dizer que, deste ponto de vista, pode ser considerado um exercício de pensamento mágico: “se eu/ela não usar roupa curta, não vou/vai ser assediada”. No entanto, este tipo de raciocínio continua a desresponsabilizar quem realmente age como agressor ou violador. Este peso posto em cima da vítima está tão intrínseco na sociedade que muitas vítimas de assédio relatam que um dos primeiros pensamentos que têm é: “o que é que eu podia ter feito de diferente?”, “eu devia ter feito x e y”, “eu não devia ter ido por ali”, …, culpando-se por um ato que em nada foi culpa ou escolha sua.

Desta forma, mesmo que acreditem piamente que uma mulher pode evitar ser assediada, isso não faz com que seja verdade que o assédio sexual é uma escolha. Se fosse uma escolha por parte da vítima, não seria assédio sequer. Um vestido curto, um calção decotado, um soutien push up, não são convites ao assédio ou violação.

Para concluir, se é para fazerem regras nas escolas, façam-nas com igualdade de género e com sensatez. Se uma miúda não pode usar um top decotado, um rapaz também não. (E não se esqueçam da fórmula cm de comprimento x altura da pessoa aluna.) Se um rapaz não pode usar boné, uma rapariga também não. E por aí fora. Não que eu seja muito fã dessas restrições (porque haver igualdade sem liberdade não é a resposta certa), mas havendo-as, que as haja com igualdade. Uma coisa é certa: o QI não baixa conforme os centímetros da roupa diminuem. Nenhuma rapariga com decote, apenas por esse pormenor, tirará uma nota menor do que uma rapariga com camisola de gola alta. No máximo, uma delas terá frio e a outra calor.

Além disso, numa última nota, deixo uma última pergunta: não poderá este tipo de compartimentação de direitos conforme a roupa fortalecer o preconceito social que relaciona a roupa usada à dignidade da mulher ou ao seu direito ao respeito?

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