sol.sapo.ptsol.sapo.pt - 29 abr. 08:10

Carlos de Matos Gomes. ‘A sociedade não deve nada aos militares que fizeram o 25 de Abril’

Carlos de Matos Gomes. ‘A sociedade não deve nada aos militares que fizeram o 25 de Abril’

Combateu em Moçambique, Angola e Guiné. Fez parte do movimento dos capitães. Diz que se limitou a cumprir o seu dever e que a única coisa que merece é respeito. ‘O mesmo respeito que tenho pelas outras pessoas, até pelos políticos’.

Retomamos a conversa com Carlos de Matos Gomes, a propósito do seu livro de memórias, Geração D – da ditadura à democracia. Há uma semana, contou-nos como aos 20 anos já comandava homens na guerra. Agora, fala-nos sobre o que motivou os capitães de Abril, as consequências da descolonização e as aspirações que tinha quando regressou a Lisboa em junho de 1974, após três comissões em África. Sobre o 25 de Novembro, diz que já sabia que ia acontecer e que a versão ‘oficial’ é «um conto de fadas».

Falamos de movimentos de libertação, mas a União Soviética, que ‘apadrinhava’ essa luta, também era uma potência colonialista, como se viu em Praga, na Hungria e noutros sítios. Os soldados portugueses que estavam a combater em África tinham essa noção?

Isso é uma leitura muito propagandística. Em África o contexto é mais complexo que isso. Os Estados Unidos tiveram uma intervenção decisiva no Congo e na criação do grande espaço da África Austral. E, por outro lado, a União Soviética teve um papel estratégico não muito significativo. O mais significativo é o da China. O Chu En-lai andou três meses em África, nos anos 60, e são os chineses que apoiam as grandes obras de infraestruturas em África. Muitos dos líderes africanos estavam mais ligados à China do que a Moscovo. No caso da Guiné, a União Soviética não tinha ali interesse particular. A maior parte do armamento do PAIGC era chinês. O armamento pesado, e aquele que é decisivo é o Strela, esse sim, era da União Soviética.

A Guiné tem fama de inferno mas também há quem diga que tem zonas paradisíacas, como os Bijagós.

A costa de Moçambique tem zonas muito mais paradisíacas do que essas. O que se passa é que a Guiné não tinha riquezas naturais, nem no subsolo nem agrícolas. Mas Angola e Moçambique tinham, e muitas. E isso é outra das grandes questões que nós confrontamos. Todas as grandes empresas que estavam a operar em Angola e Moçambique eram de capital estrangeiro. A Diamang era da Anglo American Corporation, que integrava também a DeBeers, e tinha uma concessão de exploração em 96% do território. As minas de ferro de Cacinga eram sul-africanas, inglesas e alemãs. A Petrofin era belga…

Todas essas riquezas se escoavam.

O tabaco de Moçambique não podia ser vendido em Portugal, era transacionado no mercado em Londres. O caju de Moçambique não vinha para Portugal, o chá de Moçambique não vinha, só o de uma pequena companhia, a Li-cungo, de resto era das companhias inglesas. O algodão de Angola era de uma companhia belga. O café de Angola também era negociado no mercado internacional de Londres. Portugal era apenas uma potência administrante dessas riquezas.

Quando se dá o 25 de Abril está precisamente na Guiné. Assiste a tudo à distância, embora lá também tivesse havido acontecimentos relevantes.

O 25 de Abril da Guiné é tão importante quanto isto: determina a rutura entre o movimento dos capitães e o movimento de Spínola. Porque na Guiné nós não seguimos nenhuma das determinações da Junta de Salvação Nacional, a primeira das quais era que se demitia o governador mas não se demitia o comandante-chefe. Nós demitimos o governador e o comandante-chefe. Depois havia orientações para se manter a PIDE-DGS como serviço de informações. Nós, no dia 26 de Abril, determinámos o fim da DGS, recolhemos os agentes e as famílias e pusemo-los em segurança num quartel. Libertámos todos os presos políticos e declarámos um cessar-fogo unilateral.

E não cumpriu aquela missão que tinha sido atribuída.

Não podíamos fazer o 25 – e o 26 – de Abril para acabar com a guerra e no dia 27 ir fazer operações ofensivas no Sul da Guiné. Não fazia nenhum sentido. Os oficiais dos Comandos perceberam isso e nem sequer deixaram o comandante entrar no quartel. E nós na Guiné reconhecemos de imediato a independência que o PAIGC tinha declarado em setembro de 73.

A Guiné regia-se por regras próprias?

As regras próprias fomos nós que as estabelecemos.

Spínola tinha criado uma tradição de autonomia?

Quando se dá o 25 de Abril não está nenhum spinolista na Guiné. Quem decide isso não são os spinolistas. O grupo a que eu pertenço desde o início é que decide o que vai fazer com a autonomia. A Guiné tem este tem este papel: primeiro, fazer a rutura com Spínola e permitir que o processo político se desenrole de uma forma mais liberta e mais ligada às movimentações sociais; e, por outro lado, fazer a descolonização com o reconhecimento dos movimentos armados como interlocutores.

Quando regressa a Lisboa em junho de 74 não lhe ocorre pensar: ‘Estive em Moçambique, estive em Angola, estive na Guiné e sobrevivi a isto tudo’?

A ideia de quem vai para este tipo de unidade é: ‘Estou preparado para ir a determinados sítios e sobreviver’. E, digamos, a coragem também é ‘especializada’. Tive experiências muito engraçadas. Eu nasci no Ribatejo, uma região que tinha a tradição dos toiros. Um dos prefeitos do colégio de Tomar até era um dos maiores forcados portugueses, o Manuel Faia, que fazia de duplo em filmes do Império Romano, pegava toiros de costas e coisas fantásticas. Encontrei muita gente de Tomar em África. Eram corajosos para pegar toiros, mas depois podiam não ser tão corajosos para combater. O que eu tinha decidido quando me ofereci para ir para a Guiné é que aquela seria a última comissão que faria. Tinha acabado a minha atividade enquanto militar e é isso que digo ao Otelo Saraiva de Carvalho. E depois ele diz: ‘Vai lá até à reunião da Manutenção’ [em junho de 74, em que Spínola e o MFA, liderado por Vasco Gonçalves, entram em braço-de-ferro, com Spínola a sair derrotado]. Depois encontrei o [Jaime] Neves, de quem eu era amigo desde Moçambique, e viemos montar o Batalhão de Comandos na Amadora.

Hoje sabemos que as consequências da descolonização não foram brilhantes. A Guiné, por exemplo, é atualmente uma plataforma de tráfico de drogas. Angola e Moçambique passaram por guerras civis terríveis. Mesmo com os milhões e milhões do petróleo, grande parte da população angolana continua a viver na miséria. Quando se fez o 25 de Abril imagino que a ideia fosse muito diferente.

Eu não tinha ideia nenhuma. [pausa] Muitas vezes perguntam-me: ‘Mas isto é o 25 de Abril que tu queres, o país que tu queres?’. Eu não tenho que querer nem deixar de querer. A liberdade é exatamente a possibilidade de uma sociedade escolher as suas opções e assumir as consequências. O que temos é aquilo de que fomos capazes. Nós, os portugueses, vivemos muito dominados sempre por aristocracias muito más, pelos ingleses e pela Igreja Católica. Entendemos sempre que há um ‘eles’ que nos governa. Eu não fui educado assim. E a questão das colónias é exatamente a mesma. As colónias foram desenhadas não por aqueles povos, mas na Conferência de Berlim. Quando eu cheguei a África, Angola era uma figura que só existia para os europeus.

Só existia nos mapas.

Em Moçambique, quando perguntava a alguém ‘o que é que tu és?’, respondiam-me ‘sou maconde’, ‘sou ajaua’, ‘sou nianja’, ‘sou ronga’. Ninguém dizia que era moçambicano. Em Angola a mesma coisa. Transformar esta estrutura num Estado-nação à europeia é evidente que se faz com conflitos internos e conflitos externos, porque depois estes novos Estados vão-se inserir numa ordem internacional que é também ela conflituante. E vão fundamentalmente servir de fontes de matérias-primas, que é para isso que receberam a independência: para as elites que lá foram colocadas pelos europeus transferirem matérias-primas para as sociedades industrializadas. Portanto, é perfeitamente natural que estas sociedades entrem em conflito, e entram mais em conflito quando há menos riqueza, que é o caso da Guiné. Como não tem matérias-primas, é utilizada como um estado-pária. Não havendo autoridade, todos os tráficos podem passar por ali. É um estado de gangsters em que há grupos que se vão digladiando entre si para lucrarem, seja com a droga, seja com as madeiras.

Com o que viu na guerra, deve ter perdido as ilusões, nomeadamente em relação ao 25 de Abril.

Entendo que nós, enquanto sociedade e enquanto indivíduos dentro de uma sociedade, devemos garantir o maior grau possível de liberdade. Que grau posso ter de autonomia individual e coletiva para criar riqueza, bem-estar e uma sociedade o mais desenvolvida possível? Foi isso sempre o que me orientou. Mas tinha a noção clara de que Portugal era um pequeno estado europeu e tem uma história de subordinação às potências marítimas. Isto é, nós somos independentes porque os ingleses…

Permitiram.

Permitiram não, impuseram! Porque não lhes interessava nada a unidade da Península Ibérica, na medida em que precisavam desta fachada atlântica para os seus tráficos, primeiro para o Mediterrâneo e depois para o Oriente. Os cruzados ingleses são determinantes desde o Porto até à ocupação de Silves. A crise de 1385 é uma crise dos ingleses resolvida pelos ingleses. A questão da Expansão é uma questão que os ingleses vão aproveitar através das companhias majestáticas. A restauração da independência é, mais uma vez, uma questão do poder inglês, que manda para cá os instrutores militares para fazerem a reconstituição das Forças Armadas portuguesas. A guerra entre os liberais e os absolutistas é uma questão inglesa. E, nas invasões francesas, a resposta é inglesa, com o Wellington…

Fala como se fôssemos umas meras marionetas…

É uma questão de geografia. A ilha de Malta não é uma marionete, simplesmente não tem outra possibilidade se não ser um porto importante para os ingleses no Mediterrâneo. Tal como Creta. Ou Gibraltar. Potências determinantes necessitam de pontos de domínio das suas áreas de influência. A África do Sul não é uma marionete da Inglaterra, mas a Inglaterra ainda tem uma base importantíssima em Simon’s Town, muito perto da Cidade do Cabo. Isto é uma questão de geografia. O Aquino de Bragança, arquiteto do Acordo de Nkomati entre Moçambique e a África do Sul, quando lhe perguntei porque é que iam fazer o acordo sendo duas realidades tão distintas – um estado de apartheid e uma república popular –, respondeu-me: ‘É muito simples. Os Estados, ao contrário das pessoas, não podem escolher os vizinhos’. É_isto, não podemos mudar a geografia.

Com o 25 de Novembro há uma mudança de equilíbrios. Foi um balde de água fria?

Não, porque eu sabia que aquilo ia acontecer. Tanto que saí dos Comandos antes. Num determinado momento foi decidido que Portugal tinha que fazer uma transformação que não assustasse a Europa. Isto implicava um regime de democracia ‘pronto-a-vestir’, idêntico ao que aconteceu nos países europeus a seguir à II Guerra Mundial.

No seu caso queria uma democracia feita por medida?

O grande problema destes regimes é que intervenção têm os cidadãos na definição das políticas e das suas vidas. Fazemos uma delegação de representação, e a partir daí não temos mais nenhuma intervenção. Eu entendi que, aproveitando a vaga da revolução, era possível encontrar outras formas não tão distanciadas, não tão burocratizadas, da representação política dos cidadãos. Nem sequer nos foi admitido um regime de duas câmaras, como a Inglaterra e a França têm. Fez-se um regime mais republicano do que democrático. E eu entendia que o regime devia ser mais democrático do que republicano. E é isso que leva ao 25 de Novembro. Tinha que se fazer uma rutura e dizer: ‘Agora entra nova tripulação e o modelo passa a ser este que está aqui pronto a vestir’. E foi o que vestimos.

Diz que a ameaça de tomada do poder pelo Partido Comunista era um ‘papão’ que se agitava para assustar as pessoas.

Toda a Guerra Fria é feita criando o papão do comunismo. Aliás, a II Guerra Mundial é consequência do papão do comunismo. ‘O comunismo vai-se expandir, os trabalhadores vão-se tornar comunistas e todo este sistema vai entrar em falência’. Era claramente propaganda.

Isso se calhar foi mais o pretexto usado pelo Hitler…

Não só. Durante muito tempo a Inglaterra não se opõe ao Hitler. O pós-25 de Novembro estava negociado desde a Conferência de Helsínquia da OSCE, onde os Estados Unidos, a União Soviética e os líderes europeus tinham acordado essa divisão de poderes. O que era preciso era fazer uma explosão, atirar uns foguetes ao ar, e foi o que aconteceu com o 25 Novembro. Aliás, o que está depois narrado é um conto de fadas. A questão dos sargentos irem assaltar as bases onde não havia aviões não passa pela cabeça de ninguém. O Regimento de Lanceiros está junto ao Palácio de Belém e não ataca a Presidência da República. Não há nenhum golpe ali. Mas era necessário, digamos assim, pegar fogo ao cenário.

Quem encabeçou o 25 de Novembro foi Jaime Neves, de quem era próximo.

Não era próximo, era amigo dele. Fomos os dois capitães ao mesmo tempo em Moçambique. Tínhamos uma relação pessoal, e tivemos sempre até à hora da morte dele.

Nos encontros e almoços de antigos camaradas de armas não há uns que são fascistas, ou saudosistas do Estado Novo, e outros comunistas ou anarquistas…?

Essas visões mais politizadas também acontecem, mas com naturalidade. Normalmente contam-se histórias, pormenores. ‘Lembra-se quando nós fomos a tal parte?’. São essas memórias, seja de momentos de tensão, seja momentos muito divertidos, porque também acontecem coisas pícaras.

Nessas situações laterais, há um jogo de póquer…

Eu tinha perdido 28 contos e disse: ‘Por mim, vou-me embora’. E o Neves, com aquele ar dele: ‘Já agora, também aproveito’. Íamos no riquexó, na ilha de Moçambique, e ele: ‘Perdeste 28 contos? ‘Tá calado que eu perdi 30!’. [risos] No outro dia tivemos de ir pedir dinheiro ao primeiro sargento, o Silvério.

Sente-se aqui um desencanto grande com os políticos. Por coincidência, ainda há um minutos li esta quadra do Ary dos Santos: ‘Só faltava que os cães/ viessem ferrar o dente/ na carne dos capitães/ que se arriscaram à frente’. Houve quem se aproveitasse da revolução?

[risos] Metaforicamente, isso pode ter acontecido, e aconteceu. Mas aconteceu sem que os capitães… não é não se terem importado. Importar, importamo-nos. Mas nunca nos sentimos diminuídos por isso. Agora, eu também sou contrário à ideia de que a sociedade portuguesa deve qualquer coisa aos militares que fizeram o 25 de Abril. A sociedade não nos deve nada. Cumpri o meu dever enquanto pessoa e enquanto militar. Não fiz nada para merecer agradecimentos nem reconhecimento.

Refere-se a condecorações?

Aquilo que eu entendo é que mereço respeito. Mas o respeito que mereço é o respeito que tenho pelas outras pessoas, até pelos políticos. Se respeito os meus cidadãos, tenho que respeitar as escolhas que eles fizeram. Posso não concordar com elas, posso avisar. Mas, dentro do meu conceito de liberdade, ‘Se te quiseres atirar ao rio, atira-te’.

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