sol.sapo.ptGonçalo Morais - 1 mai. 21:30

O inimigo na escuridão

O inimigo na escuridão

Cada vez mais ansioso por destruir o meu inimigo, lembro-me do capitão Ahab, completamente obcecado com a baleia branca, perseguindo-a até aos confins do oceano desconhecido.

A cabei de fechar o meu exemplar d’Os Lusíadas – uma edição maneirinha, boa para ler na cama – e de apagar a luz da mesa-de-cabeceira. Amanhã há mais. Desde que os relógios mudaram para a hora de verão, adormecer tornou-se uma questão menos pacífica, mas adotei recentemente uma técnica que não costuma falhar. Há quem tome comprimidos, há quem conte carneirinhos, há quem ouça música ou podcasts: eu conto livros, que é como quem diz ponho-me a recapitular a lista dos títulos que li nos últimos tempos. Ao fim de poucos minutos, normalmente estou a dormir. Atenção: não pensem que estou com isto a sugerir que leio livros chatos.

Já estava eu bem encaminhado para cair nos braços de Morfeu quando um mosquito quase me entrou pelo ouvido e me deixou completamente desperto. Se eu estivesse sozinho, a solução seria simples. Teria acendido a luz e caçado o insolente. Como não estava só, restava-me esperar que ele voltasse e tentar neutralizá-lo com um golpe certeiro.

Não faltou muito para voltar a ouvir o zunido irritante. Assim que me pareceu estar suficientemente perto, preparei-me para o embate e desferi uma forte chapada na cara. Dali a nada o mosquito andava outra vez a rondar. Voltei a contrair a cara. Desta vez a chapada acertou-me perto da orelha.

Sinto uma forte comichão nas mãos: já fui mordido. Cada vez mais ansioso por destruir o meu inimigo, lembro-me do capitão Ahab, completamente obcecado com a baleia branca, perseguindo-a até aos confins do oceano desconhecido – também eu, ali na cama, me vou tornando cada vez mais irracional, debatendo-me na escuridão do quarto contra o atrevido mosquito.

Em desespero, vou desferindo chapadas cada vez mais fortes em mim próprio quando o zumbido se aproxima. Continuo a ouvir aquele som finiho, mas na verdade já não sei se tem origem no inseto ou no meu ouvido interno. Já devo ter com a cara inchada de tanta pancada. Até que por fim a minha mulher acorda. Peço-lhe que se tape bem e acendo a luz. O maldito inseto está mesmo a jeito. Não escapa, mas verifico que não tem sangue. Desta vez, lembro-me do Tubarão de Spielberg (um Moby Dick moderno), quando o biólogo e o polícia abrem o estômago de um tubarão apanhado pelos pescadores locais e percebem que não é aquele o predador que procuram.

Com tudo isto o relógio já marca cinco da manhã e eu ainda não preguei olho.

Até que, pouco a pouco, começo a sentir-me vencido pelo cansaço.

E o que tem tudo isto a ver com livros?, perguntarão os meus ilustres leitores. Não se trata apenas desse método original para adormecer, de recapitular os títulos lidos. Tem que ver, sobretudo, com os livros que não li e podia ter lido. É que às vezes fico a pensar: ai se eu pudesse aproveitar para a leitura todas estas horas de voltas e reviravoltas na cama! Seguramente a proporção entre livros lidos e livros por ler na minha biblioteca seria mais equilibrada.

De manhã dou de caras com o mosquito. Deve estar de barriga cheia. Mas, acordado, sou mais racional. Ele que goze bem a refeição. Não vou começar o dia a derremar sangue… o meu próprio sangue.

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