expresso.ptJosé Matos Correia - 1 mai. 08:00

Há dias maus

Há dias maus

Tratando-se de um Presidente da República, o que é feitio pode transformar-se em defeito

Todos nós temos dias maus. Em que dizemos algo que não devíamos ou em que fazemos algo desastrado. É próprio da vida. Ou, melhor dizendo, é inerente à natureza humana.

Porém, as consequências dos momentos infelizes são, evidentemente, distintas, em função de múltiplos factores: do teor da intervenção ou da acção concretas, da posição ocupada pelo seu autor, da gravidade das repercussões sobre terceiros, etc.

Marcelo Rebelo de Sousa teve, no passado dia 23 do corrente mês, um desses dias (particularmente) maus. Mau na forma e mau no conteúdo.

Na forma, porque não lembra a ninguém responsável (muito menos a um Presidente da República) aproveitar um jantar com a Associação de Imprensa Estrangeira para tecer os comentários que vieram a público. Mas, sobretudo, no conteúdo, porque as apreciações que então deixou são de uma infelicidade absoluta (para não dizer pior). Quer a respeito da ascendência asiática de António Costa. Quer no que toca às origens rurais de Luís Montenegro. Quer no que se relaciona com o tema das reparações às antigas colónias. Quer a propósito do maquiavelismo revelado pelo Ministério Público ao abrir um processo sobre o caso das gémeas no mesmo dia do anúncio da demissão do anterior Primeiro-Ministro.

O problema é que não se trata de situação inédita. Com efeito, Marcelo Rebelo de Sousa tem, com alguma regularidade, afirmado o que não devia. Algo que o obrigou, por vezes, a esclarecer o que realmente quis dizer ou, mesmo, a ter de se retratar.

Para não ir mais longe, relembre-se o comentário aquando da apresentação do relatório sobre os abusos sexuais na Igreja, as declarações à margem do bazar diplomático sobre a situação em Gaza, os comentários públicos frequentes sobre as decisões do Governo ou as recorrentes apreciações sobre as qualidades e defeitos de políticos.

Conhecemos todos bem, há muito, a personalidade de Marcelo Rebelo de Sousa. E, por isso, poderíamos resvalar para aquela ideia piedosa de que não é defeito, é feitio. Só que, tratando-se de um Presidente da República, o que é feitio pode transformar-se em defeito. E esse risco é patente.

Em direito constitucional, uma daquelas coisas básicas que se ensina aos alunos é o que diferencia um órgão do Estado do titular do mesmo. Aquele é a instituição à qual compete emitir uma vontade que é imputável ao Estado. Este é a pessoa física – ou o conjunto de pessoas – a quem cabe tornar efectiva essa vontade.

Nesse contexto, é essencial, portanto, distinguir entre a actuação de alguém que é desenvolvida no quadro da sua vida privada ou as opiniões que, nessa esfera, são tão legítimas como as de qualquer outra pessoa e, diferentemente, aquilo que é feito ao serviço do Estado. E, inclusive, compreender que, sem qualquer incoerência, o titular de um órgão pode, nessa qualidade, adoptar decisões diferentes das posições que defendeu enquanto pessoa privada.

Mas, precisamente por força dessa central dicotomia, não deve o titular de um órgão deixar-se arrastar pela tentação de, no quadro das suas funções, dar voz aquilo que pensa enquanto pessoa ou cidadão.

Ora, algumas intervenções de Marcelo Rebelo de Sousa são aptas a evidenciar que não compreende – ou não aceita - que o cargo que ocupa lhe impõe, por natureza, limitações sérias ao conteúdo das mesmas. Ou, dito de outra forma, que se parece constatar uma dificuldade em compatibilizar o cidadão-Marcelo com o Presidente da República-Marcelo.

E isso é grave, pois que, como muito bem notou Vital Moreira, impende sobre o chefe do Estado um elementar dever de respeito e reserva institucional.

Há, contudo, uma outra dimensão em que a actuação de Marcelo Rebelo de Sousa pode revelar-se especialmente problemática.

De acordo com a nossa lei fundamental, são tarefas do Presidente da República, entre outras tarefas, representar a República e a unidade do Estado. Presidindo, mas não assumindo responsabilidades governativas, o seu estatuto implica que se coloque acima dos conflitos (e das intrigas) políticas e que desempenhe funções agregadoras, sem o que pode ficar comprometido o exercício das funções de “árbitro, bombeiro e polícia” (para recorrer à feliz expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira), essenciais ao normal funcionamento do sistema.

Unir, em vez de dividir, deve ser, portanto, a preocupação primeira do Presidente da República. E as críticas que começam a acumular-se, vindas dos mais diversos quadrantes políticos e sociais, constituem prova inelutável de que se corre o risco de isso não acontecer.

Que maus dias não voltem por isso, a acontecer. Ou, pelo menos, que isso só suceda quando estejam em causa pequenas minudências e não questões importantes.

Fora do tema que abordei, queria deixar uma nota pessoal. Ao fim de três anos, e por iniciativa própria, decidi colocar um ponto final nesta coluna que venho semanalmente subscrevendo. E, ao fazê-lo, gostava de formular três agradecimentos sinceros. Ao Expresso, pela honra que me proporcionou. Ao David Dinis, que há muitos anos faz o favor de ser meu amigo, pelo convite que me formulou. E, “last but not least”, a todos quantos, ao longo de todo este tempo, concordando ou não comigo, tiraram alguns minutos do seu tempo para ler o que fui escrevendo.

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