www.sabado.ptPedro Proença - 2 mai. 08:25

Amar a liberdade dos outros com a nossa liberdade

Amar a liberdade dos outros com a nossa liberdade

Opinião de Pedro Proença

Caíu o pano sobre as comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril. Foi uma comemoração eivada por pormenores trágico-cómicos da incontinência verbal do Presidente da República e pela arrogância do líder do PS, que achou que a adesão popular às comemorações traduzia a vontade do povo em ver a esquerda a governar Portugal. Pena foi que ninguém tivesse perguntado a Nuno Santos se achava que as eleições legislativas do passado dia 10 de Março foram uma enorme fraude eleitoral.

Delírios à parte, a verdade é que o comentário de Nuno Santos revela um problema na visão política periférica dos nossos políticos que, mesmo passados 50 anos sobre a revolução de Abril, continuam a ver a sociedade através de um tubo estreito, uma condição comumente referida em oftalmologia como visão em túnel. 

Até há uns anos ainda acreditava que o tempo mudaria inevitavelmente essa visão estreita, polarizada e analítica de olhar politicamente a sociedade. Uma visão em que gostamos da opinião dos outros quando nos identificamos e não gostamos quando não pensam como nós.

Cinquenta anos depois constato, sem surpresa, que Portugal pouco mudou na forma do relacionamento político, que continua carregado de preconceitos e rótulos ideológicos que acentuam a polarização e que reforçam os extremismos.

Perdoem-me o estilo confessional, mas se o Rui Tavares e a Mariana Mortágua podem contar histórias familiares, eu também tenho esse direito.

Cresci num ambiente familiar de tolerância. Relembro o enorme corredor da casa da minha avó materna em Viseu, onde nas paredes, conviviam pacificamente os retratos de Humberto Delgado e de Salazar. Aqueles retratos eram o único sinal das diferenças ideológicas entre o meu avô e a minha avó.  O meu avô, médico e  filho de um advogado republicano que transmitiu aos cinco filhos os valores do progressismo republicano e que acabou por ter até uma passagem pela sede da PIDE no Porto quando um dos irmãos foi preso por ligações ao PCP, o que lhe custaria o lugar de médico na CP. A minha avó oriunda de uma família de valores conservadores. Viveram um casamento feliz que terminou com a morte do meu avô a poucos dias do 25 de Abril de 1974. Os retratos, esses, ficaram intocados no corredor até à morte da minha avó no ano 2000.

Os meus pais foram também um exemplo feliz de convivência pacífica de valores ideológicos . A minha mãe embuída dos valores do pai e do convívio com o ambiente universitário já contestatário da academia de Coimbra e de Lisboa. O meu pai, educado num colégio jesuíta, empresário, herdeiro do negócio iniciado pelo seu bisavô que fora condecorado em 1930 com o grau Cavaleiro da Ordem de Mérito Agrícola e Industrial pelo Marechal Carmona, então Presidente da República.

Nem o facto do meu pai ter sido alvo de perseguição política no Verão quente de 1975 com tentativas de ocupação do seu negócio e de ter sido alvo de algumas humilhações públicas, rotulado muitas vezes de fascista e de reacionário, esmoreceu a liberdade de opinião que sempre fomentaram em sua casa. Aliás, nem esses factos impediram que o próprio Zeca Afonso, colega de profissão da minha mãe, continuasse a ser visita de casa dos meus pais em Setúbal, em convívios onde de forma livre mas respeitosa todos opinavam sobre política.

Aprendi com os meus pais e com o exemplo do meus avós que a liberdade só se cumpre quando amamos a liberdade do outro com a nossa própria liberdade.

O resultado prático da aplicação deste princípio nas relações sociais é que, quando respeitamos a liberdade do outro evitando a tentação de lhe querer impor os nossos valores e a nossa forma de ver o mundo, acabamos por perceber que a nossa simples presença na sua vida acaba por ser, de forma serena e natural, uma espécie de referência, de matriz de comportamentos e valores alternativos ao dispor do outro que até os podem adoptar sem sentir qualquer espécie de pressão ou constrangimento.

O 25 de Abril de 1974 só se cumprirá quando todos, sejam de esquerda ou de direita, se ampliarem uns aos outros, se expandirem em liberdade, abrindo espaço para que, um com o outro, sejam algo que nunca tiveram a possibilidade de ser.

Mais crónicas do autor 07:00 Amar a liberdade dos outros com a nossa liberdade

Cinquenta anos depois constato, sem surpresa, que Portugal pouco mudou na forma do relacionamento político, que continua carregado de preconceitos e rótulos ideológicos que acentuam a polarização e que reforçam os extremismos.

19 de abril Alcunhas, Açaí, Papaias e Sensacionalismo

A comunicação social portuguesa tem revelado nas últimas décadas um apetite voraz e crescente sobre notícias envolvendo processos judiciais, tornando o segredo de justiça alvo de acesa discussão.

05 de abril Política criminal de “Terra Queimada”

Processo judicial após processo judicial perguntamo-nos: Onde estava a ACT para monitorizar e fiscalizar o eventual incumprimento de leis laborais e das condições de trabalho nas explorações agrícolas? Que investimento fez o Estado na divulgação de informação nos países de origem destes migrantes para evitar que caiam em mãos menos escrupulosas quando se deslocam ao nosso país para trabalharem na agricultura?

22 de março Ciganos, Polícia e a Sociologia Transformista

Transformarmos de forma arbitrária análises estatísticas em probabilidades, contamina a opinião pública, atira gasolina para a fogueira antiga dos factores que levam à auto exclusão social da comunidade cigana e das desconfianças mútuas entre ciganos e Polícia.

08 de março A derrota da esquerda também pode fazer cumprir Abril

Seja qual for o resultado dessas eleições, dúvidas não restarão que o eleitorado português se encontra visivelmente divido entre esquerda e direita, sendo ainda notório um crescimento significativo da extrema-direita personificada na imagem do Chega e do seu líder.

Mostrar mais crónicas Tópicos Portugal liberdade 25 de Abril esquerda direita Pedro Proença
NewsItem [
pubDate=2024-05-02 09:25:10.0
, url=https://www.sabado.pt/opiniao/convidados/pedro-proenca/detalhe/amar-a-liberdade-dos-outros-com-a-nossa-liberdade
, host=www.sabado.pt
, wordCount=946
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_05_02_1519908556_amar-a-liberdade-dos-outros-com-a-nossa-liberdade
, topics=[opinião, pedro proença]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]