expresso.ptRui Lage - 2 mai. 10:29

As colónias que Abril libertou e as feridas que é preciso sarar

As colónias que Abril libertou e as feridas que é preciso sarar

Sejamos claros, não há como reparar crimes tamanhos, salvo no plano simbólico. Os mortos são irreparáveis. O que se pode é cuidar dos vivos

Perante o debate relançado pelo Presidente da República sobre as reparações devidas às ex-colónias e a semanas de umas eleições europeias, recordo a histórica resolução do Parlamento Europeu, de 26 de Março de 2019, “sobre os direitos fundamentais dos afrodescendentes na Europa”, aprovada por uma larga maioria de 535 votos. Votaram a favor todos os 21 eurodeputados portugueses à época, incluindo Paulo Rangel e Nuno Melo, hoje ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, respetivamente. Se isso abona a favor de ambos, também deixa à mostra o cinismo da postura do atual Governo. Lemos, nessa resolução, que o PE convida os Estados-membros a diligenciarem reparações sob a forma de “pedidos de desculpas públicas” e da “restituição de objetos roubados aos países de origem”; como os exorta a “tornar públicos os seus arquivos coloniais” e a “incluírem a história dos afrodescendentes nos programas escolares”.

Alguns países estão em consonância com o apelo do Parlamento Europeu e endereçaram já pedidos de desculpa oficiais: o Reino-Unido, a Dinamarca, a Alemanha, a Bélgica e os Países-Baixos. A Alemanha e a França restituíram diversas obras de arte. Noutras latitudes, o Canadá indemnizou as comunidades originárias e a Nova-Zelândia revisitou os manuais escolares.

Antes de prosseguir, esclareço que sou filho de um político que foi companheiro de prisão, na secção da PIDE da cadeia da Machava, na antiga Lourenço Marques, dos padres espanhóis da missão católica que denunciaram o massacre de Mukumbura e difundiram informação sobre o massacre de Wiriyamu. Como foi companheiro de prisão, e amigo, dos padres do Macúti, presos pela PIDE após a homilia na qual denunciaram as barbaridades do colonialismo português. Carlos Lage esteve preso cinco anos, entre 1968 e 1973, metade dos quais em cela solitária, por, entre outros, “ser inimigo da política ultramarina do Governo português”, acusação que assumiu sem ambiguidades, embora não tenha fugido à tropa e à guerra que abominava. Com risco de vida, passou para fora do cárcere nomes de prisioneiros políticos executados por privação de alimento e água, o método preferencial da PIDE. Mas muitos não sobreviviam sequer aos interrogatórios. Só na Machava, morreram 260 presos políticos. Não fosse por Fernando Rosas e pela já desaparecida historiadora Dalila Mateus, a investigação sobre as operações da PIDE nas ex-colónias seria inexistente. Diga-se que uma das condições para a reparação é expor a verdade nua e crua sobre o colonialismo. Enquanto subsistirem o silêncio, os tabus, as meias-verdades, o trabalho de luto coletivo – porque é também isso que está em causa – ficará inconcluso. Em França, por iniciativa de Macron, arrancaram há um ano os trabalhos de uma comissão de historiadores franco-argelinos para analisarem o passado colonial francês. Por cá, é o descaso e a cobardia.

Os povos dos países colonizados viram as suas culturas, crenças e costumes suprimidos. Não podiam falar a sua língua – a língua dos seus pais e avós. Era “a negação absoluta do ser africano inscrita na realidade colonizadora”, escreveu Eduardo Lourenço em 1976. Eram servos. Escravos. Não tentemos adoçar a história por calculismo moral.

António Costa teve a coragem e a grandeza de pedir desculpa pelo massacre de Wiriyamu, em 2022. O Presidente da República associou-se a esse gesto, tempos depois, conquistando a autoridade política e moral para reintroduzir o tema da reparação. Ele tinha feito igual apelo na sessão solene do 25 de Abril de 2023.

O caminho da reparação pecuniária é um caminho falacioso. É um caminho que não muda as mentalidades. Pode até envenená-las. Marcelo excluiu já que se estivesse a referir a compensações desse cariz. Em 2004, um relatório da ONU propôs uma categoria de “justiça transicional”, que significa uma panóplia de ações projetadas num horizonte de reconciliação a longo prazo, com efeitos curativos perenes, em vez de um reembolso para comprar a boa consciência. O próximo mandato das instituições europeias pode ser aproveitado para estabelecer uma Diretiva-Quadro que defina critérios comuns sobre o tema das reparações e restituições.

Mas, sejamos claros, não há como reparar crimes tamanhos, salvo no plano simbólico. Os mortos são irreparáveis. O que se pode é cuidar dos vivos. E cuidar dos vivos significa intensificar a cooperação com os países que sofreram os horrores do colonialismo, acelerando o seu desenvolvimento e o combate às desigualdades; reconhecer que temos especiais responsabilidades históricas para com os imigrantes deles oriundos, como aliás fizemos com o Acordo para a Mobilidade na CPLP; puxar esses países para a órbita da União Europeia; valorizar o espaço público na componente memorialística e simbólica; contar com a comunidade artística para remover as teias de aranha do nosso sótão mental; rever os manuais escolares e, sem dúvida, devolver bens culturais e artefactos museológicos.

Se há períodos da nossa história que nos desonram, pedir desculpa por eles é um ato responsável e honroso, que nos reabilita e dignifica como povo. Cada geração herda os erros da geração que a precede, como as próximas gerações herdarão os nossos erros. É a “atormentada continuidade do homem” de que Agustina Bessa-Luís falava n’A Sibila.

O que não se compreende é que se possa considerar extemporâneo o tema da reparação das ex-colónias justamente no ano em que celebramos os cinquenta anos da Revolução que pôs termo ao colonialismo. Se, chegados à meia-idade da nossa democracia, ainda não estamos maduros para esse debate, então quando é que estaremos? Em 2074?

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