sol.sapo.ptGonçalo Morais - 3 mai. 22:40

A batalha do focinho

A batalha do focinho

O Dr. Batalha e tutti quanti talvez um dia também sofram da perplexidade da Senhora provedora de Justiça.

Estava eu posto em sossego no feriado – que é coisa que raramente gozo, pois isto da malandragem da advocacia implica trabalhar, muito e a desoras, para que conste -, e eis que alguém me envia uma prosa do Dr. Batalha, o provedor mor da transparência, encimada por um título com a palavra focinho. Eu dispensava a prosa, é verdade, e habitualmente não leio nem sei que existem textos desses, e, quando sei, penso logo em certo provérbio popular sobre vozes e fico no céu. Mas mandaram-me, e li, por deferência a quem me enviou – e também porque gosto da palavra focinho, confesso. Ora, era bonito o texto, e forte (como se costuma dizer), uma prosa assertiva onde ia tudo a eito, num mar de generalidades, suposições e processos de intenção. Tudo muito sedutor, num tempo em que o disparate não é taxado e a ofensa sempre vai abençoada por conta da liberdade de expressão. Tanto me faz, e vá o autor em paz. O Dr. Batalha, como me dizem ser costume, compôs, em letra de forma, um fartote de dar no focinho, a este e àquele, a uma e a outra, trás, zás, pumba. Até me incluiu a mim, e agradeço a distinção, embora o Dr. Batalha, entre outros equívocos, pareça achar que me conhece e sabe alguma coisa sobre mim. Mas está enganado, deve ter-me confundido. É uma questão, provavelmente, de deficiente visão do focinho. E eu, que também não conheço o Dr. Batalha de parte nenhuma, faço-lhe a delicadeza de não afocinhar para processos de intenção sobre o mesmo, nem sequer sobre a questão de saber se ele teria alguma função e relevo na provedoria e na consultoria da transparência se, acaso, não se ocupasse, amiúde, ao que me dizem, de disparar a torto e a direito, com acusações, presunções, conspirações e outros ões que, noutros tempos menos afoitos, teria de provar para evitar que lhe fossem ao focinho. Felizmente, vivemos tempos livres e brandos, e o Dr. Batalha que aponte, feliz e farto, a voz ao céu; tanto me faz.

Ainda assim, deixo-lhe, e a outros corifeus da dita transparência, incluindo os bobos da corte que fazem da acusação e da atoarda profissão, duas notas breves. Uma, para dizer que se equivocam sobre a alegada inimizade dos advogados relativamente a índices sonantes (e um nadinha histéricos aqui e ali). E também, ou ainda mais, sobre a mesma alegada inimizade relativamente a um Ministério Público voraz, pouco ponderado (para não dizer outras coisas), cheio de húbris, inchado de vocação moral, social e/ou política. Retifico, pois não aprecio generalizações, que são injustas e perigosas: alguns magistrados do Ministério Público. É que isso é ótimo para os advogados, não só porque têm mais trabalho, mas também porque ‘ganham’ mais vezes (pelo menos enquanto houver juízes em Berlim, e não meros notários do Ministério Público, que se limitem a carimbar o encarniçamento investigatório e acusatório com um solene ‘como se promove’ e, já agora, o preguiçoso copy and paste de saudosa memória). E também ganham às vezes, claro, porque há inocentes (estranho, não é, doutores batalha?), há equívocos do Ministério Público (e outras coisas), há disparates até, por muito que convenha a certas batalhas fazer crer que a infalibilidade, a bondade, a competência e outras virtudes são um bem intrínseco à natureza das coisas.

Segunda nota, para dizer que o Dr. Batalha e tutti quanti talvez um dia também sofram da perplexidade da Senhora provedora de Justiça (que é pessoa inteligente, sabedora e de bem – ao contrário, evidentemente, dos advogados em geral e dos ‘grandes escritórios’ em particular), quando levarem com um processo no focinho. Um daqueles que os magistrados titulares cavam durante meia dúzia de anos, ou uma década, ou mais, cheios daquela húbris e daquele inchaço moral, político e/ou social que acima referi, processos esses pontuados, no seu (longo) caminho, por umas valentes violações do segredo de justiça e por aquelas campanhas públicas alimentadas por aquela comunicação social que acha que jornalismo de investigação é regurgitar peças e atos processuais e/ou fazer fretes, voluntários ou negligentes, a certas e determinadas fontes. Nesse dia, falamos, falamos a sério, e também sobre batalhas e sobre focinhos. Até lá, vou meter o meu focinho noutras leituras, e cada qual que mire o seu ao espelho; e faço votos de que se sinta tão bem com o respetivo reflexo como eu me sinto com o meu.

Advogado

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