www.sabado.ptRui Costa Pereira - 3 mai. 18:13

A Procuradora-Geral da República no Parlamento

A Procuradora-Geral da República no Parlamento

Opinião de Rui Costa Pereira

Este não é um texto em torno do tema sobre a ida ou não-ida da Procuradora-Geral da República (PGR) à Assembleia da República (AR), ideia que fervelhou, sobretudo, após uma entrevista do Presidente da AR, com os partidos políticos a aproveitar o tempo de antena que a sua discussão garantia, não em benefício de um debate sério sobre a Justiça em geral ou sobre o Ministério Público (MP) em particular, mas em prol de mais um casinho que entretém alguns, na crença de outros sobre um eventual capital político que esse género de tricas lhes dá. Telegraficamente, direi apenas o seguinte: tenho mixed feelings, porque se ao mesmo tempo entendo que a autonomia do MP pode sair beliscada com a convocatória da PGR à AR por causa de um processo concreto – sejamos sérios e assumamos que é isso que está em causa –, considero também arrepiante o exercício de poderes públicos sem qualquer tipo de escrutínio e de accountability. À luz desse empate de princípios, o pragmatismo, que muito prezo, faz-me concluir que a ideia de a atual PGR ir à AR prestar contas, seja lá sobre o que for, é uma inutilidade, porque não diria/dirá uma palavra sobre investigações pendentes, estejam em segredo ou não e os deputados não têm poderes legais para a obrigar a dizer o que a mesma não quer/quererá dizer.

Até por vontade própria, esta PGR tem os dias contados. 161 dias, até 18 de outubro, altura em que atinge, precisamente, 6 anos de mandato. O(s) desastre(s) dos últimos meses estão infeliz e suficientemente frescos na memória coletiva, dispensando, por isso, avivamentos de memória. E antes deles?

Alheando-me das investigações criminais baseadas em recortes de imprensa, dos inquéritos que se arrastam sem qualquer respeito por exigências constitucionais de celeridade (ainda me lembro quando na faculdade se olhava para a Constituição como a Lei Fundamental…), das acusações infundadas mediatizadas que culminaram em absolvições e das abusivas ingerências da ação penal na ação política (não há pano, ou lona, capaz de encobrir essa evidência), foi no mandato da atual PGR que a cúpula hierárquica do MP capitulou perante o sindicato dos magistrados do MP (SMMP) e a impugnação judicial de uma diretiva que visou clarificar os poderes hierárquicos do MP.

No eclodir do (mais um) circo mediático em torno dessa diretiva e do frenesim que o SMMP moveu contra a mesma, a classe política, agora tão preocupada com a ineficiência hierárquica do MP (exceção feita, curiosamente ou não, do Chega), àquela data, a mesma classe política não deixou de procurar colher os seus frutos da histeria. Assim, por iniciativa do grupo parlamentar do CDS-PP, e com o apoio unânime dos demais partidos votantes na reunião da 1.ª Comissão da AR de 02.12.2020 (registando-se a ausência do PAN e do Chega nessa votação), foi aprovada a audição da PGR, com fundamento na consagração, naquela diretiva, de "processos paralelos ao processo penal, sem cobertura legal", dos quais "não pode senão resultar em descredibilização dessa acusação pública, comprometendo a transparência e isenção qua a deve caracterizar" (sic.).

Nessa audição parlamentar, que teve lugar a 19.01.2021, Jorge Lacão (PS), começando por recordar as vozes que sugerem que "a possibilidade de intervenção hierárquica comprimiria, de forma drástica, a chamada autonomia interna dos magistrados do Ministério Público", não deixou de trazer também – e temos para nós, muito bem – à discussão que a "estranha" (sic.) redação inicial do artigo 97.º, n.º 1 da proposta de lei que culminou no novo estatuto do MP, que previa que "[o]s magistrados do Ministério Público são responsáveis e hierarquicamente subordinados, sem prejuízo da sua autonomia, nos termos do presente Estatuto", foi unanimemente modificada por todos os grupos parlamentares, em termos de se ter consagrado que "[c]om respeito pelo princípio da autonomia do Ministério Público, os seus magistrados são responsáveis e hierarquicamente subordinados, nos termos da Constituição e do presente Estatuto", desse modo tornando claro que a autonomia é devida ao MP enquanto órgão, não aos seus magistrados individualmente considerados. Sem surpresa, sobre a redação inicial apresentada, o SMMP entendera que a proposta do Governo constituía "um avanço na clarificação do sistema hierárquico do Ministério Público" e juntando a fome à vontade de comer, defendera, igualmente, que o "conceito de autonomia interna dos magistrados poderia ser mais densificado, consagrando-se um regime mais próximo daquele que rege os magistrados judiciais".

Nessa audição parlamentar, respondendo às diversas questões colocadas pelos deputados, a PGR foi absolutamente clara sobre o seu entendimento sobre a chamada autonomia interna dos magistrados do MP, dizendo que esta "tem de se entender considerada numa lógica de equilíbrio com aquilo que também é absolutamente certo e exato, que é a natureza de magistratura hierarquizada do Ministério Público. Ou seja, a autonomia interna dos magistrados não é algo de irrestrito. É algo que pressupõe a sujeição dos magistrados a princípios de objetividade, a princípios de legalidade, mas é algo que tem de ser também compaginável num quadro de equilíbrio, que se mantém inalterado com a entrada em vigor deste novo estatuto, com a subordinação hierárquica, com a hierarquia, com o respeito, justamente, pelas diretivas, ordens e instruções, que num quadro de uma qualquer estrutura hierarquizada são válidos e que cumpre obedecer".

Parece, pois, que há muito, os órgãos do Estado – a começar pela AR e pelo MP, representado pela sua PGR – estão em convergência sobre o que é a autonomia do MP e o sobre o que ela não é. E também sobre o que é a estrutura hierárquica do MP.

Mas como o dever ser e o ser nem sempre se aliam, não obstante a PGR, aqui e ali, na procura de salvaguardar o prestígio da instituição que representa, afirmar que a hierarquia funciona, não é isso que, globalmente, se tem visto e não é essa imagem que tem passado. E é com sincera pena que assisto à forma como alguém que entende adequadamente a autonomia e a estrutura hierárquica do MP cedeu aos interesses corporativos. Essa cedência tem-lhe ao menos valido, do ponto de vista interno, a defesa pública do incansável aparelho mediático do SMMP e dos últimos presidentes da sua direção e, do ponto de vista externo, pontuais manifestações do Chega.

A verdade é que a diretiva da PGR sobre o exercício de poderes hierárquicos em processo penal não era, nem é, perfeita, nem isenta de críticas. Não pretendo sequer discutir a legalidade dos chamados dossiers de acompanhamento, onde haveria um respaldo documentado do exercício desses poderes. Facto é que a mesma, a ser efetivamente cumprida e executada, permitiria saber muito mais e compreender melhor sobre o exercício, competente ou incompetente, de tais poderes hierárquicos.

No entanto, beneficiando da conhecida dormência da justiça administrativa, através da impugnação judicial dessa diretiva, paralisada há mais de 3 anos, o SMMP conseguiu sozinho sobrepor-se aos poderes do Estado, sobrepor-se à própria PGR, para os quais era inquestionável a inexistência de uma ideia de autonomia interna dos magistrados do MP, que lhes assegurasse um exercício da ação penal absolutamente isento de controlo hierárquico. Da discutível legalidade desses dossiers de acompanhamento, passámos, então, para a certamente ilegalmente insustentada quase-anarquia interna, também à margem da lei. 

Rui Costa Pereira, Advogado penalista e Associado Coordenador da MFA Legal

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O SMMP conseguiu sozinho sobrepor-se aos poderes do Estado, sobrepor-se à própria PGR, para os quais era inquestionável a inexistência de uma ideia de autonomia interna dos magistrados do MP, que lhes assegurasse um exercício da ação penal absolutamente isento de controlo hierárquico.

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