www.sabado.ptCarlos Neto - 3 mai. 12:23

As crianças deveriam sentar-se menos e brincar mais

As crianças deveriam sentar-se menos e brincar mais

Opinião de Carlos Neto

Do ponto de vista evolutivo, a postura de sentado é uma passagem fundamental para adquirir a posição bípede e mover o corpo em dinâmicas de transporte e mobilidade do corpo através de movimentos de locomoção (andar, correr, saltar, etc.) e manipulação de objetos (preensão, agarrar, lançar, etc.). As passagens do decúbito ventral para o decúbito dorsal, reptação, gatinhar, sentar-se e colocar-se de pé, exige uma série de aquisições motoras e percetivas de grande complexidade interna (organização morfológica, muscular, orgânica, cognitiva e social) e externa (ambientes adequados de espaços, materiais de estimulação e vinculação afetiva dos adultos). É um trajeto de desenvolvimento motor fascinante de controlo das diferentes partes do corpo, organizadas através de um eixo central (coluna), com o aperfeiçoamento do posicionamento da cabeça, cintura escapular, cintura pélvica e colocação dos apoios, em relação aos desafios da gravidade, para atingir um equilíbrio adequado às solicitações das tarefas quotidianas. A educação postural associada a uma respiração correta é um assunto muito importante na educação infantil desde as primeiras idades, no sentido de ultrapassar as fragilidades ao longo da nossa história do posicionamento e funcionamento da nossa coluna vertebral (cervical e lombar). Estas aquisições motoras ontogenéticas, são o resultado de importantes formas de adaptação ao longo da humanidade e são a base de todo o nosso desenvolvimento posterior para sequências mais complexas de coordenação motora global e fina (central e periférica) a par da linguagem, estruturação cerebral, emocional e comportamento social. A aquisição da postura de sentado é um estado de transição para um corpo que se move no espaço, e estabelece relações de circunstância com o envolvimento físico e social.  

No mundo moderno, temos vindo a assistir a grandes alterações nos hábitos dos usos e técnicas corporais no comportamento postural, tendo existido um aumento muito significativo em tarefas que passamos muitas horas sentados em praticamente todas as idades e contextos de vida. Esta situação pandémica de estar muito tempo sentado, está a assumir situações muito preocupantes para a saúde física e mental dos adultos (situações laborais e preocupações ergonómicas) e na vida de crianças e jovens (em casa, na escola e nos tempos de lazer). As crianças passam uma parte muito significativa das suas vidas na posição de sentadas. Sentadas em casa, sentadas no automóvel, sentadas na escola, sentadas no recreio, sentadas nas atividades extracurriculares, nos trabalhos de casa, sentadas em qualquer lugar. Não viemos ao mundo para estar sentados a tempo inteiro. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o sedentarismo, excesso de peso, obesidade, diabetes, e outras doenças crónicas, tem tido um aumento muito preocupante nas últimas décadas. A OMS indica que o fato de não se seguirem as recomendações atuais de atividade física é responsável por mais de 5 milhões de mortes em todo o mundo, a cada ano, em todas as faixas etárias. Atualmente, mais de 23% dos adultos e 80% dos adolescentes não são suficientemente ativos fisicamente. Já existem estudos muito robustos sobre os efeitos dos estar sentado muitas horas em situações laborais, em que os trabalhadores apresentam um risco de 16% mais elevado de mortalidade por todas as causas e 34% mais elevado de mortalidade por doenças cardiovasculares. Segundo os investigadores, para contrariar este risco acrescido, estas pessoas teriam de fazer mais atividade física nas 24 horas por dia para reduzir estes riscos, comparativamente às pessoas que não passam muito tempo sentadas (jamanetworkopen, 2023 - JAMA Netw Aberto2024).

Em relação ao comportamento da postura de sentado sedentário em crianças, apenas existem estudos, ainda que insuficientemente desenvolvidos e confirmados de forma longitudinal, transversal e retrospetiva, mas que apontam muitas preocupações em relação a problemas relacionados com um desenvolvimento de competências motoras, inatividade física, ausência de tempo de brincar, dependência digital, ausência de sono reparador e alimentação saudável. Uma das alterações mais significativas no comportamento de sentado sedentário em crianças, tem sido o aumento muito significativo de utilização de dispositivos digitais lúdicos (écrans), que as convidam a uma progressiva viciação e aprisionamento do corpo a culturas sedentárias. Passaram a ficar reféns de um corpo que se manifesta através dos seus dedos, carregando em teclas a todo o momento com grande eficácia, mas enfrentando muitos riscos e perigos nessas práticas lúdicas, de busca de interação virtual e de informação, mas prisioneiros do mundo real e do contato físico espontâneo e relacional com os amigos e com o mundo. Por outro lado, o tempo de exposição a ecrãs através de dispositivos digitais, está também correlacionado com várias doenças, por passarem muito tempo sentadas, com consequentes alterações esqueléticas, motoras, mentais, emocionais e sociais. Associa-se, igualmente, a problemas de atenção, de aprendizagem e de baixo desempenho académico. No contexto familiar também se observam muitas alterações de comportamentos das crianças neste tipo de atividades frente aos dispositivos digitais, passando muito do seu tempo sentadas em tarefas escolares lúdicas online, alterando significativamente as relações e regras de convívio entre todos os seus membros. 

No contexto escolar, tem existido grandes mudanças nos modelos curriculares, obrigando as crianças a passarem muito tempo intelectualmente ativos, mas com um corpo passivo (sentados, quietos e em silêncio). Há crianças a passar dez horas na escola, sentadas, sem terem grande movimento e, por outro lado, com um desequilíbrio muito grande entre tempos formais (escolarização) e tempos informais (jogo de atividade física, etc.). A adoção de hábitos posturais incorretos numa fase precoce da vida pode prejudicar a saúde, levando a doenças relacionadas ao sistema ósseo-muscular-articular, afetando também o desempenho em várias atividades que dependam de uma postura sentada adequada. Outro fator bastante importante a ser lembrado, diz respeito à necessidade de mudanças de postura durante o tempo de permanência em sala de aula (espaço interior), isto é, nenhuma postura deve ser mantida por longos períodos, inclusive a postura sentada. Também deveria existir uma reflexão mais aprofundada sobre o mobiliário escolar, no sentido de uma adaptação às caraterísticas morfológicas e motoras de cada criança e permitisse maior mobilidade e alternância do comportamento postural e movimento do corpo no espaço de ação. A introdução de pedagogias alternativas a um modelo clássico de ensino-aprendizagem, poderiam de igual modo contribuir para suavizar estes comportamentos sedentários das crianças passarem muito tempo sentadas (alternância entre aprendizagens em espaços interiores e ao ar livre, etc.). Sabemos também que a capacidade de atenção e concentração é baixa nas crianças, sendo necessário introduzir pausas regulares promovendo atividades através de um corpo ativo em movimentos diversificados, associado ao dispêndio energético (brincadeiras ativas e arriscadas). Assim, seria interessante permitir ao aluno que se deslocasse durante o tempo escolar, realizando tarefas alternativas, pelo menos uma ou mais vezes a cada hora, mesmo que por um período pequeno de tempo.

As dificuldades de estabelecer regras e manter uma vida ativa, através do prazer de brincar, do jogo de aventura e risco, da atividade física regular, contato com a natureza e passear de forma autónoma no espaço público, têm vindo a diminuir e a atingir proporções muito preocupantes para a saúde pública, não havendo na maioria dos casos, consciência social, parental e escolar desta situação. Temos a convicção, que estes estilos de vida sedentários na infância através de posturas passivas e sedentárias, terão muitas consequências em idades futuras em diversos domínios que podem desequilibrar as dinâmicas de bem-estar e capacidade adaptativa dos cidadãos. Convidam-se os pais e educadores a terem perceção destas situações de sedentarismo na vida das crianças, e promoverem um corpo ativo das crianças e ambientes ativos. Sentar-se ou estar sentado é uma postura muito útil na vida da humanidade para diversas tarefas (alimentação, leitura, meditação e escuta do corpo, etc.), mas prejudicial para a nossa saúde física e mental se não nos mexermos de forma habitual e regular no nosso quotidiano. 

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