expresso.ptManuel Pinho - 3 mai. 08:00

Já não vão a tempo de fingir que nada se passou

Já não vão a tempo de fingir que nada se passou

Em teoria, os procuradores têm a opção de deduzir acusação ou arquivar o processo, mas, na prática, vão mesmo ter de deduzir acusação porque lhes falta a humildade necessária para reconhecer os seus erros e as consequências que deles decorrem

A investigação do caso EDP reporta a decisões de política de energia tomadas em 2007, cujo efeito ainda se sente hoje. Até essa altura, os consumidores não podiam escolher o seu fornecedor de eletricidade, enquanto hoje têm numerosas escolhas.

De maneira a criar mais concorrência, o governo deu gratuitamente licenças aos concorrentes da EDP para produzirem eletricidade a partir do gás natural.

A EDP passou a ter de pagar ao estado centenas de milhões de euros para construir novas barragens, quando anteriormente as recebia gratuitamente. Foi obrigada a vender a sua participação na REN de maneira a não poder influenciar a sua política de preços em detrimento dos consumidores. Teve de concorrer em condições de igualdade com empresas portuguesas e estrangeiras para produzir eletricidade a partir de fontes renováveis.

Quanto a resultados concretos, hoje Portugal é o quarto país da Europa que mais produz eletricidade a partir de fontes renováveis, os consumidores domésticos pagam tarifas 20% inferiores à média da UE e as empresas pagam o quinto preço mais baixo de eletricidade entre os 27 países da UE. .

Neste caso, as consequências são os tremendos danos reputacionais causados à maior empresa portuguesa, obrigar ao afastamento dos seus dois principais dirigentes e manter um ex-ministro em prisão domiciliária há dois anos e meio. Por tudo isto, espero de todo o coração que este caso não seja arquivado e chegue a julgamento de maneira a que se faça justiça sem margem para dúvidas.

No que me respeita, estou em prisão domiciliária há 2 anos e meio com base nas mentiras destes mesmos procuradores que um juiz amigo aceitou cegamente sem se dar ao cuidado de as verificar, o que é especialmente grave quando a liberdade de alguém está em jogo. Ter encerrado contas bancárias, vendido património e escondido fortuna, o que não é matéria de “acho que sim ou acho que não”, é algo muito fácil de comprovar ser falso.

No que respeita aos dois principais dirigentes da EDP, havia supostamente “evidência arrasadora” de que tinham cometido crimes, o que também é falso, tendo em conta que se tal fosse verdade já teriam sido acusados há muito. Isto não pode ser ignorado e não se resolve com um arquivamento do processo e fingindo que não se passou nada.

Os procuradores seguiram duas linhas de investigação, ambas com fortes motivações políticas. Primeiro, a EDP ter sido supostamente favorecida em 1200 milhões de euros em resultado de medidas tomadas em 2007 no quadro da liberalização do mercado da eletricidade e, segundo, a existência de actos de corrupção aquando da construção da barragem do Baixo Sabor pela Odebrecht, empresa brasileira que esteve no epicentro do conhecido caso Lava Jato.

Por um lado, o governo em que fui ministro estaria ao serviço dos grandes interesses capitalistas, nomeando o presidente da EDP a mando de Ricardo Salgado e favorecendo a empresa em 1200 milhões de euros.

Não restam dúvidas de que Ricardo Salgado não teve nada a ver com a nomeação de António Mexia, que foi sugerida ao governo por um grupo de empresários encabeçado por Paulo Teixeira Pinto (seu maior concorrente) e Vasco de Mello (líder do grupo Mello, que tinha fortes ligações ao BCP), os quais já o confirmaram por escrito e em tribunal, pelo que não restam dúvidas.

A grande vantagem de um julgamento numa democracia é ele ser coberto pela imprensa, que relata com verdade o que se passa no tribunal, pelo que ninguém pode invocar que lá foi dito o que não foi dito ou que não foi dito o que lá foi dito.

Os supostos favorecimentos teriam a ver com os chamados CMEC [Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual] e com o direito dado à EDP de usar durante mais tempo as suas barragens a troco de um pagamento ao Estado de mais de 700 milhões de euros.

A Comissão Europeia acompanhou de perto e em detalhe todo o processo dos CMEC, havendo inclusivamente declarações públicas e formais do seu vice-presidente a este propósito.

No que respeita à situação das barragens, a Comissão fez uma investigação aprofundada durante a qual ouviu todas as partes, tendo concluído que não teve lugar nenhuma irregularidade, antes pelo contrário (a Comissão notou que o governo tomou precauções adicionais para defender o interesse patrimonial do Estado). Esta decisão da Comissão Europeia tem força de lei e não pode ser recorrida. Portanto, os procuradores são muito bem-vindos se fizerem a acusação de ter havido favorecimentos à EDP e já devem saber o que os espera.

Por outro lado, membros do governo ter-se-iam envolvido com a Odebrecht, empresa que esteve no epicentro do caso Lava Jato e é autora, segundo a justiça americana, do “maior escândalo de corrupção de sempre”, o que a levou a impor-lhe uma multa de 3.500.000 dólares.

A Odebrecht financiou numerosos políticos e campanhas eleitorais, sobretudo na América Latina, o que quando foi descoberto levou à condenação de altas figuras a penas de prisão, tendo inclusivamente um ex-presidente do Perú cometido suicídio. Em resposta a uma carta rogatória do Ministério Público português, a justiça brasileira descobriu evidência material que poderia levar à descoberta de financiamentos partidários em Portugal, tal como sucedeu numa dezena de outros países, mas os procuradores titulares do caso EDP não ligaram a isso.

Segundo se sabe, os procuradores deixaram cair a pista Odebrecht, mas apenas depois de terem causado danos reputacionais irreversíveis aos arguidos do caso EDP. Portanto, já não vão a tempo de fingir que nada se passou.

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