www.sabado.ptPedro Duro - 3 mai. 13:39

Hum-hum

Hum-hum

Opinião de Pedro Duro

A noite distribuiu-se em expetativa, paixão, afeto, gargalhadas e o adormecer. O adormecer dela; é o único que interessa. Deitou-se sobre o meu peito, porque o conforto morava todo ali. Eu ajeitava-me para cima, assegurando que nenhum osso perturbava o aconchego. O braço direito intercalava entre descanso, carícias e uma fixação no cabelo. A mão esquerda pousava onde pudesse acrescentar afeto, sem trazer cansaço. E a cabeça procurava o ponto ideal entre a respiração serena, os lábios que se colam à nuca e o nariz que evita a comichão provocada pelos cabelos soltos. O culminar está próximo quando já não há nada para compor e só resta a pergunta de quem ama: "estás bem?". A lânguida resposta – "hum-hum" – assinala a perfeição. Eu e ela éramos unos e serenos.

Fico ali, à espera de que o momento não acabe, apenas a pensar como é bom. Nenhum mal passado retira o céu presente, nenhum desgosto futuro merece roubar o que deveria ser eterno.

Imagino que o céu seja uma escolha nossa. Há quem veja nele uma felicidade que não se pode imaginar, uma paz que nunca se sentiu, como se um deus nos surpreendesse com o que a finitude não alcança. Ser surpreendido com mais e melhor é uma dádiva que nos faz crescer e uma maldição que nos impede de viver. Mas eu descobri o meu céu e não quero que deus nenhum me surpreenda com mais nada. Quando morrer e reclamar o prémio por quase sempre ter dado o melhor de mim, espero que a misericórdia divina me eternize aquele "hum-hum". E, se não houver nada de divino em fechar os olhos de vez, que o meu último sopro me traga a memória desse "hum-hum".

Às vezes penso se não devia ser mais sofisticado. Se não devia debruçar-me sobre a profundidade das coisas, a complexidade do ser humano, a complexidade do universo, despejando teses e teorias, citando este e aquela, sabendo que não posso definir nada, mas que faço um figurão exibindo todas as tentativas de nos descobrirmos. Às vezes penso se não valia a pena deter-me mais sobre pôr ou não pôr uma vírgula depois de "às vezes", ou se não devo deixar andar porque assim me apetece, porque sinto fluir, porque tanto faz, porque sei que posso. Receio que, mais ou menos conscientemente, falar seja exibir. E tenho vergonha disso, porque me emprestaram todas as culpas enquanto crescia: para não ser de mais, para não ser de menos, para não me ficar pelo assim-assim. A conta certa pode ser um exercício angustiante.

Até o sexo pode ser angustiante. Porque se quer chegar lá, mas não se quer passar dali. Porque nos comparamos, porque receamos ser comparados, porque nos sabemos envelhecer. Como eu odeio envelhecer. E, ao mesmo tempo, como adoro o que a idade me foi revelando.

Tudo parece ter um valor como se a vida fosse uma enorme folha de cálculo. Sou avaliado pelos clientes: querem que os ajude a crescer. Sou avaliado pelos meus sócios: querem que os ajude a crescer. Sou avaliado pelos meus colaboradores: querem que os ajude a crescer. E eu faço exatamente o mesmo com todos, porque de todos quero, quero e quero. Que me ajudem a crescer.

Não penso nisso a toda a hora, não sou um obcecado pela pressão que o mundo me faz e pelo que lhe devolvo na mesma moeda. Na verdade, nem penso assim tanto. Talvez só o faça para poder dramatizar, para que se perceba bem o contraste: aconteça o que acontecer, nada se sobrepõe ao tempo que parava quando ouvia aquele "hum-hum".

Mas o tempo não para. Adormecesse na ilusão da eternidade ou ficasse acordado, o incómodo no braço acabaria por se sentir. Um leve formigueiro e, depois, uma dor que me obrigava a mudar de posição. Se não fosse eu, seria ela. A determinada altura, o corpo sentiria a pressão e quereria mudar de sítio. Procuravam-se outros atalhos para o afeto, intercalando desconforto com novos confortos. Mas o eterno perdera-se. Perde-se sempre. Talvez por isso o guardemos para a morte.

Há um lugar perto do céu onde não me importava de ficar: olhar para ela a dormir. Cada sinal, cada volta do cabelo, cada centímetro da pele, na sua perfeição ou na sua imperfeição. Se se apresentava como uma capa de revista, amava o postal que me oferecia. Se se apresentava rugosa e macerada, amava a imperfeição; o privilégio de me oferecer a imperfeição. Há uma intimidade muito própria das que se nos mostram imperfeitas: confiam em nós tanto quanto gostamos delas; e amam-nos no que alcançamos e não alcançamos.

Eu não me cansava de a ver dormir, no seu ligeiro respirar, no modo como apresentava os dentes ou cruzava os braços. Eu não me cansava de nada.

Eu sei que há pedaços de afeto que podemos ter com várias pessoas. Eu sei que há pedaços de eterno que podemos sonhar com esta ou aquela. Eu sei que nada é para sempre, porque nos resignamos com o "sempre" que nos foge ao mesmo tempo que ansiamos pelo novo que parece estar "sempre" ao virar da esquina. É estranho como o "sempre" pode ser simultaneamente "nunca", simultaneamente "tudo", simultaneamente "nada", simultaneamente "esta", simultaneamente "outra". É estranho como distorcemos tudo porque não nos contentamos com nada.

Eu queria o sempre tal como ele é, como se só houvesse uma marca de iogurte no supermercado e, para mim, fosse a melhor marca do mundo. A felicidade é um bairrismo – é conhecer o mundo e não querer sair de casa. Eu conheço o mundo, mas adorava ter uma casa. Uma casa pequena ou grande, rica ou pobre. Uma casa sem ela, porque, afinal, ela não existia. Uma casa com ela, a que sonhei, sem saber mais nada, enquanto me respondia "hum-hum".

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