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Como floriram os muros a seguir à revolução

Como floriram os muros a seguir à revolução

A partir do testemunho de José Cardoso Pires das semanas e meses que se seguiram ao 25 de Abril, recuperamos a imagem de cidades construídas em torno da censura e dos seus tantos obstáculos e proibições, cidades em cujos muros subitamente floresciam sinais de um diálogo livre e aberto.

Antes daquela súbita e exaltante primavera, antes desse perfume se ter desatado e ludibriado por um bom tempo este povo desgraçado, como uma benesse desvairada, como se os deuses houvessem perdido a paciência, se nos detivéssemos nos pormenores, no rosto que punham as nossas cidades, nessas ruas onde havia como um estupor entranhado, um enredo de ameaças, de existências magoadas, onde os sonhos viviam debaixo de um impiedoso cerco, sendo tão difíceis de segurar as linhas de abastecimento, o que veríamos é que tudo aquilo era um extenso enredo concentracionário, uma forma congeminada para desfazer homens, dar cabo de todo o encanto, de qualquer ímpeto corajoso ou desejante.

Gonçalo M. Tavares intuiu que a trama de uma cidade pode nascer em resposta à perseguição em que alguns se deleitam. Reconhecendo que quem persegue determina o caminho de quem foge, é possível olhar uma cidade e tentar entender como foi feita pelos perseguidores, pelos fortes, de forma a encurralar os perseguidos, os mais frágeis. É possível mesmo passear e tentar reconhecer nos edifícios antigos, nas construções que nos foram legadas essa forma do medo e da obediência. No fundo, todo esse conteúdo de chantagem, todos esses modos de atrasar, travar e perder aqueles que buscam escapar a essa malha, pode ainda ser lido e sentido.

A censura nunca é só um corte, uma proibição daquilo que busca encontrar um meio de expressão, um modo de se fazer reconhecer. Há toda uma trama com vista à colonização cerebral, à domesticação das vontades e contenção dos impulsos, dos desejos, uma privação do saber, e até dos horizontes, uma mentira premeditada e com vista a degradar os juízos, a imaginação. Uma miséria que atinge a vida lá onde ela ainda procura medir a ausência. É preciso olhar uma cidade e reconhecer como ela pode em si mesma ditar a vida daqueles que nela se acham aprisionados, do mesmo modo que uma rotina é capaz de embotar os reflexos de indignação ou de espanto. Lê-se a um nível semiconsciente uma série de indicações, obstáculos, barbarismos, há cidades que conspiram com os seus espaços que nos castigam e aborrecem, com o seu desenho mesquinho, niquento, medroso. Um modo de trucidar a luz, de organizar as trevas, de transformar tudo aquilo que se vê em matéria para uma ficção desgastante. Nelas damos pelos peões movendo-se como se os pés tivessem de pedir licença a cada passo. As pedras não têm como cair, ganhar velocidade. Distâncias que não oferecem às imagens a capacidade de se expandirem, o ar parece demasiado fino para desenvolverem pulmões.

Há cidades onde todo o tempo é desbaratado, cidades que ignoram inteiramente a agilidade da poesia, o fulgor vivificante das analogias. Cidades que apenas propagam o desânimo. Cidades cheias de estátuas atravancando a vida, e nestas nem as fontes cantam. Cada praça trabalha para reproduzir o dia anterior, até às manchas, articulando a ausência segundo os mesmos vícios. Um homem põe-se a olhar e não demora muito até ficar com a impressão de ter visto passar o cadáver de si mesmo. Ali, se quiser aproveitar a vista, mesmo que a tenha, se se puser a dizer certos vocábulos como quem sorve um chá, acha nele o gosto de uma paciência desoladora. Passa a mão pela madeira da mesa e sente o modo como tombou ao ser abatida, e como esse sacrifício foi em vão. Nesses lugares, deixamos cariar os dentes entre impressões estrangeiras, ou pelo menos revoltantemente belas, para que a voz adquira através delas algo desse desgaste dos açucares que congeminam as imaginações prodigiosas. Alguém reconhecia que «o cansaço nacional não se pode explicar com palavras». «Porque aqui é como se fosse sempre e nunca», anotava outro.

A poesia que tomou a cidade

Tivemos um pequeno ditador, desses que acabam por ser miudamente infames, na forma como entretecem sempre tudo no sentido de rebaixar, apoucar, degradar intimamente. Ao arrancar o projeto a partir da sua semelhança, ao conceber o país de acordo consigo mesmo, soube reduzi-lo a uma ficção realmente suja, aplicando essa miséria da proporção. Como assinalou José Cardoso Pires, este «empenhou-se em fazer da Censura uma sintaxe do pensamento coletivo, uma autêntica profilaxia do Estado que não visava apenas controlar mas criar formas de mentalidade adaptadas ao Poder. Como primeiro objetivo procurou confinar as cidadelas culturais e todo o país, todo, a um isolacionismo que lhe facilitasse a imposição violenta das suas regras. Em segundo alcance pretendeu, e com algum êxito, elaborar em silêncio fechado certas máscaras contemporâneas para publicidade exterior».

Basta lamber com a vista alguns dos exemplos daquilo que foi edificado durante esses 48 anos e deparamos com esse resíduo nauseante, essas proporções modestas, severas, com todos os lugares-comuns devidamente abençoados. Por isso é tão difícil livrarmo-nos inteiramente desse estupor, dessas formas de gerar algum cansaço antecipado. A inércia política e o conservantismo ainda se respiram, e mais valia que algumas das nossas cidades houvessem sido bombardeadas, ardido nalgum incêndio regenerador que nos permitisse começar de novo. Muitos se alegram e tecem loas à suposta beleza da nossa Revolução, que em vez de sangue teve cravos no cano das espingardas, mas talvez isso mesmo nos tenha impedido de levar as coisas ao seu limite, reconhecer a importância de se escorraçar o fascismo, mesmo esse que se ficou por aí a estrebuchar, ainda agarrado a este desenho de um país-prisão. Mas com o perfume que por fim atravessou a clausura daquela ficção grotesca, durante uns tempos coube aos muros uma presença de espírito, um modo da consciência por fim virar do avesso e desordenar todo aquele pavor.

Cardoso Pires reconhece como nos dias que se seguiram àquela madrugada, o cenário de mastigação foi vencido pela forma como as ruas estavam tomadas por «gente ao vivo». E com aquele «tropel, arraial, sementeira, alvorada», muitos tiveram enfim um vislumbre do que seria realmente dar cabo da ficção de uns poucos, dessas classes privilegiadas, desses modos de traição e apropriação indevida. «Descobrimos essas coisas frente a frente e no em cima da hora, nós que por vezes tínhamos do povo uma ideia só histórica e mais ou menos iluminada de entusiasmos ou de ceticismos pequeno-burgueses. Mas agora estamos a aprender o país».

Um dos momentos mais espantosos dessa liberdade, e algo que inteiramente se perdeu foi a liberdade e ousadia de se servir dos muros, de ouvir deles um grito. Dizer tudo numa frase, eis a verdadeira poesia que então arrebatou a cidade. Cidades onde até ali apenas se liam formas de restrição, muros «que dantes eram vedações impávidas ou autoritárias (na realidade recusavam qualquer aproximação com a ameaça do proibido: ‘proibido afixar’, ‘proibido estacionar’)», os muros subitamente viram-se tomados de uma vontade de falar tudo, eliminar os traumatismos políticos, económicos e religiosos que haviam sido inculcados durante esse longo e insuportável ditado, os muros eram a ilustração de um imenso repúdio, e de um ânimo polemizador. Cardoso Pires viu como naqueles dias estes não apenas falavam, discutiam, como criticavam a vida com o hábil e diabólico humor do anonimato.

«Hoje numa fachada de igreja posso ler: ‘Deus é parvo’ – mas no dia seguinte outra mão, outra letra, acrescenta por baixo: ‘Parvo és tu. Assinado: Deus’. Aqui discute-se o pão: ‘Reforma agrária, o trator sobre o capital’, acolá fala-se de sexo: ‘O sexo a quem o trabalha’ – e estamos no diálogo a todas as vozes, no diálogo dos muros. Vem por exemplo este e proclama: ‘O voto é a arma do povo’, levanta-se logo outro e responde: ‘Se votas ficas desarmado’. Mais adiante cita-se um herói ou anuncia-se um partido ‘Todos ao comício popular monárquico, o rei vai nu’. ‘Abaixo o Black & Decker’ grita um paredão remendado com cartazes comerciais, ‘Viva a foice e o martelo’».

A poesia estava realmente na rua, com toda aquela sua capacidade de fazer alucinar, até que a vida não aceitasse mais a mesma contenção degradante. Esse eco dos muros era suportado por slogans e notícias, propaganda dos partidos, desenhos, murais coloridos, modos de ilustrar a estranheza e o lado animador de um povo que ousava imaginar um mundo inteiramente seu. Se o fascismo o industriara no sentido de apenas entreter desejos ou divagações aborrecidas, tediosas, ali estava um começo com toda a vontade de se livrar de guiões predeterminados.

Havia um desprezo pelos limites e pelas proibições que sinalizavam agora esse enredo abjeto do antigamente. Antes que houvesse tempo de congeminar esses apetites que isolam e pervertem, que atraiçoam o quadro da paixão em comum, Cardoso Pires reconhece como a vivacidade daquele diálogo conseguiu até impor-se e derrotar a praga do marketing. «Em menos de nada romperam os cartazes do sonho consumidor, essa praga dirigida, cobrindo-os com mensagens do tempo essencial, com jornais de parede, comentários, caricaturas. Inclusiva, expulsaram as placas dos falsos heróis que davam o nome às ruas e no lugar desses mortos dourados, escreveram Bento Caraça, Catarina Eufémia, Redol, General sem Medo… ‘Mortos da Vala Comum, Ocupai o Panteão!’».

Uma cartilha de pedra e cal

Seria preciso esperar, dar tempo para que as cidades e o seu contrato subliminar pudesse reorganizar as manobras de recaptura do imaginário, através dos primeiros sinais de desgosto, para que o comércio soubesse reaver as suas rotinas, recuperar o conteúdo da humilhação de décadas, insistindo-se na nossa incapacidade natural para viver em democracia, esse desejo fundo de acatar essa maldição que se tornou o verdadeiro culto político que hoje vemos renascer. Naqueles dias, Cardoso Pires reconheceu como o projeto de regeneração português provocou alguns calafrios nos países à volta, e que sofremos «a boicotagem de certas democracias à nossa difícil economia: tentam isolar-nos com calúnias e desesperos, às vezes nos mesmos jornais onde durante o fascismo apoiavam a nossa libertação». Já se sabe qual era o projeto, e como em poucos meses a liberdade aqui e ali foi aceitando subornos, em nome desse progresso estrondoso que nos aferrou a novas formas de miséria, desde logo afetiva e simbólica. Mas antes de o sonho consumidor voltar a reclamar os muros, aqueles que eram vivos e que não tinham receio do que pudessem ler por aí, terão sentido como o simples ato de andar pela rua, viajar neste país, era ver-se exposto a toda «uma cartilha de pedra e cal ilustrada de sentenças populares». Cardoso Pires notava ainda como «muito do nosso saber está resumido ali, nos muros, e foi escrito por todos e ninguém – o homem que passa e o militante noturno, o artista de mão ignorada e o profeta comum. E frase a frase, caminhando e lendo, vamos aprendendo à flor das cidades e dos tapumes os abecedários da democracia, cada qual com seus apelos e seus avisos». O escritor ainda nos adianta como esse foi o sinal de uma verdadeira rutura, um gesto que hoje seria apercebido como de vandalismo, denunciado pelos danos ao património, mas que foi assim que todo um país saía do antigamente-na-noite para se pôr a discutir à luz do dia. E agora, e guardando estas impressões por um bocado, qualquer um poderá lançar um olhar sobre os muros, para apreciar como só sufocado pela praga do marketing, como só de forma intersticial, convergindo para um ruído espesso, que caracteriza esta outra noite, os muros hoje apenas exprimem a ausência de um sentido, a ironia mais improdutiva servindo de corta-unhas para a nossa agonia.

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