Observador - 12 set. 00:12
Duche frio
Duche frio
Como está calor poderá ser tempo de todos os intervenientes políticos aproveitarem para tomar um duche frio. Far-lhes-á bem. Precisam de esfriar a cabeça. Será bom para a saúde deles e a nossa.
Durante a campanha eleitoral para as eleições de março de 2024, a coligação PSD/CDS foi poupadinha nas promessas para a saúde. Decidiu arriscar pouco e remeteu as suas propostas para um Plano de Emergência que iria ser elaborado até 60 dias depois da tomada de posse do Governo. Foi pouco, o PSD tinha já mais ideias e melhores documentos divulgados e ainda poderia ter muito mais se tivesse feito o trabalho de casa durante os anos em que esteve na oposição. Oito anos foi muito tempo para pensar. O programa eleitoral para a Saúde e, consequentemente, o do Governo foi remetido para o Plano de Emergência que ainda estava por elaborar. Logo, mesmo que agora queiram acreditar no contrário, toda a fatura política de saúde da AD foi colocada no Plano. Assim, a expetativa criada pelo Plano de Emergência e, posteriormente, de Transformação foi demasiada. É sabido que em face de muita expetativa, quando a perceção é fraca, a satisfação é péssima.
Na minha muito modesta opinião, o enfoque no Plano foi um erro político em vários momentos. No anúncio (na campanha eleitoral insistiram num plano desconhecido), na conceção tardia (60 dias foi uma eternidade e mostrou que o Governo não sabia ao que vinha, sendo que nem os 60 dias foram estritamente cumpridos), na forma de elaboração (com uma consultora que foi incompetente e um pequeno grupo de gente boa e esforçada) e na divulgação (reforçando as medidas de resolução a três meses, sem acautelarem as incertezas). Acresce que ao Plano falta um foco coerente, um conjunto central, conteúdos com formulação clara e uma estratégia de avaliação. O Plano não é um documento estratégico intrinsecamente coerente e abrangente, com soluções elencadas para a maioria dos problemas. O próprio título, ao incluir Emergência, remete para ações imediatas, para agora, e é isso que as pessoas, a oposição e a comunicação social ouviram e exigem. Só que o agora é demasiado cedo. Mas o Plano tem virtudes que podem ser exploradas e pode ser melhorado. Voltarei ao Plano noutro texto.
Mas houve mais erros. O anúncio da monitorização pública das metas foi um disparate, quando a falta de capacidade de cumprir com tudo no imediato era evidente e, pior, sendo também evidente que a expetativa jornalística seria de grande rapidez na execução das medidas e atingimento dos objetivos. Logo, a notícia foi “só duas medidas cumpridas” e não “já cumpriram com duas das medidas” apesar do curtíssimo exercício de governação.
Chegados onde estamos, com dificuldades que, naturalmente não se poderiam mitigar em três meses, muito menos eliminar, andam todos com os nervos em franja e os dislates sucedem-se.
É tudo “muitíssimo difícil”, o momento é “muito delicado”, a oposição estará a ser “um bocado exigente” com o cumprimento do Plano. Estavam à espera de quê? Estiveram oito anos a denunciar as insuficiências no SNS, como lhes competia enquanto oposição, e parece que só as descobriram agora que têm de governar? O Governo não deve entrar numa versão de “a culpa foi do Costa”, com “o Costa” onde já esteve “o Passos.” Para as pessoas a culpa é irrelevante. Querem que lhes resolvam os problemas e quem governa tem de fazer. Não chega prometer.
“Eliminámos listas de espera”. Não é verdade. Há listas de espera enormes e de todo o tipo. Mas há menos gente a aguardar cirurgia para tratamento de cancro e isso é muito bom. Contudo, o Oncostop 24 não é stop coisa nenhuma. Infelizmente. A incidência de cancros não para de aumentar. Para lá de estarem fixados na cirurgia daqueles que esperavam intervenção a 30 de abril de 2024, nunca será demais salientar que o êxito do programa deve medir-se na redução, nem que seja em 1000 doentes, no número de pessoas que em cada momento esperam por cirurgia para lá do tempo aceitável. Reduzir esse número em três meses foi obra e merece elogio. Ter operado os que estavam em lista a 30 de abril, foi um princípio. Mas encurtar a espera não é eliminar a lista dos que esperam.
Ainda falta muita coisa. A Senhora Ministra tem consciência disso. Olhemos para o cancro. Quem foi operado? Com que cancros? Onde? Por quem? Com que resultados? Falta o trabalho de redução do intervalo de tempo entre suspeição e confirmação que tem de ser fixado entre 15 e 30 dias. E o intervalo entre confirmação do diagnóstico de cancro e início do tratamento, não apenas cirúrgico, terá de ser de 7 a 30 dias consoante a doença. E, não se admirem, nem todos os cancros têm de ser tratados quando diagnosticados. Há que assegurar o seguimento dos doentes próximo de onde moram e por Médicos de Medicina Geral e Familiar. Há um mundo por fazer em padronização e controlo de qualidade. O registo oncológico nacional (RON) tem de trabalhar sem a idiossincrasia do Norte querer ser diferente. Há que melhorar as medidas de apoio aos sobreviventes de cancro. Há muito que ainda não foi feito.
“A situação este ano é muito melhor do que era no ano passado”. Será? Com que provas? Ou, em alternativa, “estamos a viver… um agravar da situação face ao ano passado”. A política está cheia de gente sem memória. E sem responsabilidades. Seria bom comparar indicadores antes de proferir opiniões. Têm razão os que dizem “não precisar de lições do PSD”. Para erros, más escolhas e inações, basta olharem para si próprios. E, se a situação nos partos está mal, até para que se testasse a real capacidade de resposta do setor privado, eu teria decidido que nos concelhos onde há maternidades encerradas se pudesse recorrer livremente ao privado que depois o Estado pagaria a conta ao preço mais baixo pago por uma companhia de seguros.
“As grávidas estão mais seguras do que há um ano atrás”. Quem o disse, como se costuma dizer, perdeu uma excelente ocasião para estar calado. Mas na Saúde, mais do quem em outras áreas da segurança, gerir o silêncio não é para todos.
“A Ministra tem de se demitir”. Porquê? Conviria explicitar e apresentar alternativas. Em todo o caso, tratar mal aquela com quem se precisa de negociar não será grande estratégia.
“O plano do Governo para a saúde falhou”. Que plano? Em parte, ou no todo? Como pode já ter falhado se a sua aplicação integral está prevista para o final de 2025?
“A Ministra revela alguma dificuldade de gestão política”. Talvez? Poderá ser verdade, depois de saber o que querem dizer com isso.
“De todas as cirurgias oncológicas que foram realizadas nos últimos meses, 99% realizaram-se no Serviço Nacional de Saúde”. Não sabemos. Apenas se pode afirmar este número sobre as que foram efetuadas ao abrigo do programa de incentivos, as que estavam atrasadas. O Governo exibe o facto de não recorrer à ajuda do setor privado como sendo um mérito. Não é. Em que ponto estão os acordos com os outros setores, social e privado, para a solução de estrangulamentos? Esta medida não estava no Plano?
“O problema está em terem demitido o Prof. Fernando Araújo”. Demitiu-se, não foi demitido. Fez bem em demitir-se. Estava politicamente conotado por culpa própria. Ficando, todas as responsabilidades seriam dele porque, afinal, era incompetente ou estava a sabotar. Correndo bem, os méritos estariam nas condições que agora lhe estavam a dar e o PS não lhe tinha dado. Se tivesse ficado nada lhe iria correr bem. Ao sair, guardou capital pessoal e político. Só fez mal por não ter demonstrado imediatamente a intenção de sair. Não deveria ter dito que estava disposto a continuar. O tempo da “sua” Direção Executiva terminou em 10 de março.
“Só depois de sabermos exatamente quais são as medidas que o Governo pretende como alternativas ao plano de emergência é que é possível fazer considerações e comentários sobre isso”, sendo o “isso” um pacto entre PS e PSD para a Saúde. Ou seja, no PS não perceberam do que se estava a falar. O “Pacto” não será uma negociata parlamentar de medidas avulsas. Não é disso que precisamos. Não é só de propostas do Governo que a oposição rejeitará ou aprovará. O que nos faz falta é um relatório parlamentar, semelhante ao que já foi feito no Canadá e em outros Pa��ses, compilando o muito trabalho já existente, com propostas para a sustentabilidade do SNS que se possam transformar num quadro legislativo coerente e consequente.
E, como não poderia faltar, “2025 vai correr bem”, “no próximo ano prometo que vai ser melhor do que este ano”. Esperemos que sim. Não sabemos. Nem sabemos em que é que vai ser melhor. Menos doentes? Menor mortalidade por doenças passíveis de prevenção? Ninguém pode saber. É sempre avisado não prometer o que não se sabe que se pode cumprir.
Seguem-se alguns Post Scriptum. Não cabiam no texto principal, mas enquadram-se na atualidade.
PS 1 – O Governo investirá 65 milhões de euros no centro de atendimento clínico no Porto? Se for verdade parece-me pouco sensato. Com tanta carência estrutural, até na oncologia, vão desperdiçar esta montanha de dinheiro numa coisa que é da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Numa medida de retorno muito incerto e num concelho em que não será necessária? E a oposição, não pergunta nada?
PS 2 – Só extinguiram as ARS agora. Falta TODA a reforma. Ainda não alteraram o quadro legal das DGS, ACSS e DE. Para quando?
PS 3 – Por favor não repitam a visita a Santa Maria de há uns dias. Foram todos ao espetáculo. Propaganda a destempo. Todos muito unidos e contentes. O que esteve melhor foi o Senhor Ministro das Finanças que entrou mudo e saiu calado. A necessidade de ir mostrar apoio presencial à Senhora Ministra só serviu para demonstrar que a Professora andava a precisar de apoio. Não repitam a maldade.
PS 4 – Agradecer aos profissionais lembra-nos o Costa que nos deu a final da Liga dos Campeões. Assumam que vão rever salários base em 2025 (se também reduzirem as taxas de IRS em todos os escalões será ainda melhor) e não se fixem apenas nos pagamentos extra por produção adicional. Não me obriguem a duchada gelada no próximo Inverno. Um pedido de friorento.
PS 5 – O problema da falta de médicos no SNS não se resolve, no imediato, com mais Faculdades de Medicina. O que não obsta a que eu seja favorável a que todos que o queiram possam ser médicos. Daí, havendo garantia de qualidade na formação, nada contra a inexistência de limite no número de escolas privadas. Mas públicas, já exigem outras considerações. Exigem investimentos em estruturas e docentes, o que não será fácil num contexto de falta de médicos. Mas há coisas que podem ser feitas já. Por exemplo, antes de montar mais escolas médicas, que tal transformar o curso de Medicina da Universidade do Algarve num currículo inteiro de 6 anos, em vez do speed dial em vigor? E, estou convencido, ainda pode ser possível formar mais médicos com as Faculdades públicas e privadas já existentes.
PS 6 – Sobre a saga do INEM. A decisão do Tribunal de Contas, validando uma decisão do anterior presidente para a contratação de serviços de helicópteros, não iliba ninguém, nem acusa ninguém. Mas mostra que o dito Tribunal pode ser flexível quando é preciso. Uma boa notícia. Dispensa duche frio.