expresso.ptBruno Vieira Amaral - 12 set. 07:18

Palavra da semana #97: escadote

Palavra da semana #97: escadote

Numa semana em que a protagonista foi uma escada, devolvemos o escadote ao seu devido lugar.

Não conheço nenhuma criança que, ao ver um escadote aberto, não sinta o impulso de subir os degraus, alcançar a plataforma precária e, a partir desse lugar altaneiro, proferir um discurso, cantar para uma multidão imaginária ou exortar as tropas para uma derradeira investida sobre o inimigo, consoante a inclinação e o temperamento de cada uma. Os escadotes são perigosos – é o próprio nome que nos alerta. São da família dos fidalgotes, dos rapazotes. Não são de confiança.

No entanto, todas as casas deviam ter um escadote. Não só porque fascinam as crianças, mas porque todos os homens, para enfrentarem o dia com uma energia renovada, deviam subir ao escadote e contemplar as dimensões do seu reino. E que mulher não se sentiria mais formosa, mais Grace Kelly de óculos escuros e lenço na cabeça, logo de manhã a subir os degraus de um jato privado, os degraus que a conduzem ao palco da sua consagração, mesmo que sejam, afinal, os degraus do escadote?

O escadote tem este dom. O escadom tem este dote. Eleva-nos. E é uma pena que, na maior parte do tempo, o ser humano careça de toda a imaginação de que é dotado e use apenas o escadote para mudar lâmpadas ou para essa tarefa mínima da masculinidade que é fazer furos na parede. Ou para o emprestar a um vizinho que precisa de substituir lâmpadas ou reservou o dia de descanso para esburacar a parede. Isso levar-nos-ia ao berbequim, ferramenta que é para o culto profano e másculo de furar paredes o que a foice e o martelo são para o comunismo. O berbequim é, pois, o que separa um homem de um rapazinho, um barbudo Joaquim de um imberbe Quim.

Mas voltemos à nossa palavra, ao nosso objeto. O escadote tem, é certo, as suas limitações. Como vimos com abundância de provas documentais, o escadote de pouco servirá ao recluso que, para escapar da prisão, tenha de galgar um muro de seis metros. Nesses casos, recomenda-se, por evidência empírica, o recurso a uma escada, de preferência extensível. O escadote é um animal doméstico que vive bem em arrecadações esconsas e sótãos mal-iluminados, embora alguns rústicos os usem ao ar-livre para podar árvores ou apanhar fruta. Não aconselho estas últimas atividades não só devido à irregularidade do terreno, que pode fazer com que o afoito piloto do escadote se despenhe sobre um canteiro de alfaces ou um netinho distraído com os grilos, mas também para preservar a dignidade e a segurança do escadote.

É que o escadote deve ser estimado. O escadote, meus amigos, deve ser acarinhado. Deve ser tratado como família. Já vos aconteceu entrarem numa casa e ver, ao lado de uma credência manuelina ou de um aparador em pau-rosa, um humilde escadote com salpicos de tinta e restos de cimento e pensarem ‘que desleixada é esta família’? Mas é esta família que respeita o escadote, que o acolhe no seio familiar, que a qualquer momento o poderá usar para que, a golpes de imaginação, uma criança se transforme num maestro, um homem contemple a extensão do seu reino e uma mulher vista a pele de uma diva. Os escadotes são as andas com que nos fingimos mais altos e ao pé de qualquer paraíso.

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