observador.ptObservador - 13 set. 00:15

A imoderação centrista

A imoderação centrista

O centrismo incorre na imoderação como corolário daquilo que significa ser centrista – a falta de argumentos, a inexistência de algo que possa guiar com profundidade aquilo que propõe como solução.

Interpretação é o que ocorre quando estabelecemos uma ligação entre aquilo que entendemos ser um “facto” e o sentido que atribuímos ao “facto”. Pegando no artigo publicado pelo Telmo Azevedo Fernandes aqui no Observador, o nosso entendimento dos “factos” por vezes não é o mais correcto: não é verdade que a China seja a principal respons��vel pela crise que o “Rustbelt” vive há décadas, como o Telmo demonstra muito bem. Contudo, um “facto” interpretado de forma errónea pode originar um “facto político” – politicamente, de facto as pessoas percepcionam a China como sendo responsável pelos males económicos do Ocidente em geral e do “Rustbelt” em particular. A culpabilização da globalização, da qual a China faz parte, por tudo e por nada também é “facto político”, por muito que seja por vezes difícil aos críticos acérrimos da globalização negarem os mais variados benefícios sociais e económicos da globalização.

Contudo, pese embora a dificuldade em negar os benefícios da globalização, tal não impede a formulação de uma alternativa. Essa alternativa é, para uma certa direita e para uma certa esquerda, o “nacionalismo económico”, o qual passa por coisas como a tentativa de produzir no espaço da nação aquilo que a nação não produz porque na verdade nunca produziu com qualidade, ou porque nunca produziu de todo. O “nacionalismo económico” sugere pérolas como, por exemplo, forçar os fundos de pensões a investirem na nação, nomeadamente nos planos de industrialização da nação. Uma nação de labregos dedicada, sei lá, à apanha da azeitona durante séculos, vai, por via do “fiat nacionalista”, competir com Taiwan na produção de “chips”. O problema do “nacionalista económico” é que, geralmente, imagina um passado glorioso que nunca existiu e sonha com um futuro que não é possível cumprir.

Significa isto que a globalização é inatacável e que o “centrismo globalista” é o que resta à política? De todo. Deus nos livre e guarde do centrismo. A esquerda e a direita ditas de centro moderado avançam como alternativa a crença em simultâneo no mercado e na burocracia estatal, sem que consigamos perceber com clareza como é que se conjugam estas duas coisas sem que a burocracia estatal tome conta de tudo e de todos. A burocracia estatal é apresentada sistematicamente como a única solução para os males do mundo, nos quais o centrista inclui o maior de todos os males – a “falha de mercado”, conceito que o centrista não consegue explicar com clareza, mas no qual acredita profundamente. David Graeber chamava a isto “bureacratic-market centrism”, o qual resulta sempre numa forma extrema de imoderação. Nas palavras de David Graeber, o centrismo incorre na imoderação como corolário daquilo que significa ser centrista – a falta de argumentos, a inexistência de algo que possa guiar com profundidade aquilo em que o centrista acredita e aquilo que propõe como solução – na verdade o centrista não defende nada, para lá do pragmatismo e do consenso, ambos ditados pelo que o momento dita. Para o centrista, a China é tão responsável pelos males do “Rustbelt” como a Papua Nova Guiné – tudo depende dos consensos que o centrista queira construir no momento.

Este carácter “apolítico” do centrista moderado garante-lhe um sentimento de superioridade moral. Mas a consequência natural da ilusão de superioridade moral é sempre a imoderação extrema, mascarada de moderação e consenso. Uma certa categoria de elites encontra um porto seguro nesta visão do mundo. Essas elites não são nem demasiado progressistas nem demasiado conservadoras, duas visões do mundo que o centrista moderado considera extremas porque profundamente políticas. Perante problemas sociais como o “Rustbelt”, as elites centristas tremem e não conseguem esconder a sua incapacidade para lidar com “factos”, principalmente quando esses factos se tornam “factos políticos”. A culpa da pobreza e do desemprego pode ser da China (mas não exageremos), até pode ser em parte dos próprios pobres, haverá certamente alguma culpa para atribuir à selvajaria que é o capitalismo ou ao destino que só a Deus pertence. Na visão do centrista moderado e “apolítico” é tudo muito complexo, daí a sua tentativa constante de resolver por fiat burocrático o “facto político” que insista em escapar às soluções que derivem do consenso.

Provavelmente o melhor caso explicativo da natureza apolítica do centrismo é o declínio da indústria automóvel europeia, o qual provavelmente originará vários “Rustbelts” na Europa. O centrista moderado não consegue tomar posição em relação à fraude que são os carros eléctricos. A moderação dita o controlo burocrático das emissões, ao mesmo tempo que tenta suprir as alegadas falhas do mercado automóvel criando artificialmente um mercado para veículos a pilhas. O centrista moderado não consegue evitar o consenso em relação à crise climática, pelo que imagina uma solução de natureza burocrática para o problema: regular o mercado, enquanto criamos um mundo mais harmonioso com o planeta. Pelo caminho, as empresas do sector automóvel entram em crise profunda e as empresas Chinesas entram no mercado europeu com bastante agressividade (fazem muito bem, diria eu). O centrista moderado, perante isto, tem mais uma solução “apolítica”: introduzir tarifas para os veículos chineses, esquecendo que essas tarifas prejudicam os construtores europeus que têm a sua produção precisamente na China. Na sua moderação, o centrista moderado regula enquanto tenta conciliar a invasão do mercado pelos construtores chineses com a necessidade de proteger a indústria automóvel europeia.

Já o “nacionalista económico” vê nisto uma oportunidade: concorda naturalmente com as tarifas e ao mesmo tempo abre as portas às empresas Chinesas para que produzam veículos a pilhas na sua nação (no caso, a Hungria, a qual mereceu uma simpática visita do presidente Chinês há pouco tempo). O “nacionalista económico” é mais aguerrido e político. As razões para o que propõe são claras – a política não é consenso, mas sim um combate entre propostas alternativas; a nação não é algo difuso, a sacrificar em nome do consenso com outras nações. A Hungria quer criar emprego e garantir estabilidade económica, por isso abre as portas à produção de automóveis eléctricos chineses. Os problemas da indústria automóvel europeia não são problemas europeus (muito menos húngaros), mas sim problemas franceses, alemães e italianos.

Já o meu problema com estas duas visões do mundo é simples de explicar: ambas resolvem por fiat burocrático aquilo que não cabe ao estado resolver. O “nacionalista económico” (seja de esquerda ou de direita) usa a burocracia estatal em nome na nação; o centrista moderado (seja de esquerda ou de direita) usa a burocracia estatal como forma de garantir consenso entre os povos, a glória de Deus e o equilíbrio com o mundo animal. Venha o Diabo e escolha… quer para o nacionalista económico, quer para o centrista moderado, os factos importam muito pouco: o que importa não é o que aconteceu, mas a forma como o que aconteceu entra numa narrativa dominante, a qual transforma alguns “factos” em “factos políticos”, sem que necessariamente algo de substancial mude. O “nacionalista económico” tem a vantagem da clareza. Sabemos ao que vem – usar o estado em prol da nação. Apesar de tudo, menos mal. Já o centrista moderado tem esta desvantagem inerente à sua natureza – nunca sabemos bem o que quer, mas sabemos que o que defende hoje pode ser o oposto do que defende amanhã… é comparável ao Católico que tolera tudo e todos, excepto a Opus Dei…

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.

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