expresso.ptSergio Esperancinha - 12 set. 07:08

Crónica de um sismo anunciado

Crónica de um sismo anunciado

Não cheguei a tirar da mesa de cabeceira o capacete, lanterna, apito, água e a trela, ou a calçar os ténis, sempre perto da cama. Também não peguei na mochila de emergência com todos os itens necessários para sair para a rua após o abalo e subsistir durante uns dias. Os móveis não se mexeram, estão presos à parede

4:30 da manhã, o vento agita as árvores e as chapas do estaleiro que desde maio incomoda a vizinhança. O meu cão está num pranto de tremores e respiração ofegante. Odeia, vento, trovões, fogos de artifício. Saio da cama, passeio com ele pela casa durante meia hora até que, finalmente, acalma. Caio na cama, entre o sono e a pequena irritação de quem sabe que já é segunda-feira e pouco falta para ter de acordar de novo. Um rugido. “Raio do vento!”, penso. Nisto, a casa vibra, abana! Interrogo-me se é o meu corpo a entregar-se ao sono, a Nortada ou...é um sismo! Acordo a minha namorada, rebolo para o lado direito para fora da cama, como ensaiei várias vezes, puxo-a para o chão. Chamo o cão. Ficamos deitados no chão, colados à cama de paletes de madeira feita e escolhida de propósito por isto ("Se aguentam centenas de quilos de mercadoria..."). Começo a puxar o colchão para cima de nós, mas o abalo termina. .

Entre a expectativa de uma réplica e querer ter mais informações, pego no telefone para aceder ao site do IPMA. Está em baixo. Redes sociais, ainda nada. Nada da Autoridade de Emergência e Proteção Civil (ANPC), por nenhum meio de tantos que há hoje à disposição. Entretanto a Google (sempre a Google) avisa que sim, foi mesmo um sismo, registado na altura com magnitude de 5.9 na escala de Richter, alguns quilómetros a Sudoeste de Sines. Ligo a televisão, a CNN estava em direto na altura do abalo e começa a reportar. Afinal a magnitude foi de 5.3. Volto ao IPMA, o site, de design confuso e não otimizado para telemóveis, já está no ar ("Se isto foi abaixo com um sismo que nem todos sentiram, o que será quando todos sentirem?"). Procuro a informação sobre o sismo. Devia estar na página principal, em grande destaque, mas não está. Na televisão, já por volta das 6 da manhã, um colega geólogo está em direto a explicar o que terá sucedido. "Amanhã, vão passar o dia a falar disto. Vão chamar geólogos que irão relembrar pela milionésima vez que Portugal é um país com risco sísmico considerável. Engenheiros e arquitetos irão dizer que o edificado não está preparado e que falta fiscalização. Especialistas em seguros dirão que a maioria das casas não está coberta. Outros comentadores falarão sobre a ação da ANPC. O presidente dirigir-se-á à nação, ministros garantirão estar tudo bem. Depois, volta tudo ao mesmo", pensei.

Encontro o comunicado do IPMA. É puramente técnico, fala até dos métodos matemáticos usados para estimar a magnitude. A acompanhar, um mapa com uma estrela no mar, que sei ser o epicentro (“A maioria das pessoas saberá?”). Mais tarde, no Instagram, o IPMA publicou um screenshot da página web com o mesmo texto. Foi o maior sismo dos últimos 15 anos, mas durante o resto do dia, nada.
Às seis da manhã a ANPC publica, mas apenas no Facebook. As três outras redes mais comuns, com alcance em faixas etárias distintas, são ignoradas. A publicação diz apenas que houve um sismo, “sem danos”, “estão a acompanhar”. Adicionam um link para procedimentos de segurança com centenas de palavras (“Quem vai abrir um link a esta hora? Devia ser uma infografia de leitura rápida!”). Nada sobre tsunami. Nada sobre réplicas. A ANPC não saberá que um fenómeno deste tipo causa apreensão e medo e, por isso, exige clareza e rapidez de comunicação? Não saberá que é preciso ter os cidadãos em alerta para o caso de ocorrem réplicas?

Duas longas horas depois, comunicação da ANPC aos jornalistas. "O sismo não reúne critérios para ativação dos planos especiais existentes para este tipo de eventos”, André Fernandes, comandante nacional da ANPC, dixit. Os planos especiais? Não sabemos quais são, mas que apenas são ativados quando a magnitude do sismo é superior a 6,1. Nessa altura, garantiu o comandante, “há acionamento direto dos planos e, aí sim, uma comunicação diferente”. O que será diferente? Mais redes sociais? Mais rápido? Tocam sirenes? Surgem infografias? E os cidadãos o que devem fazer? E se ocorrerem réplicas (que não podem ser previstas)? Porque é que a magnitude é critério para ativar o sistema de emergência? Um sismo de menor magnitude mais próximo, mais superficial ou até em terra, terá maior intensidade. Por isso, deveria bastar que o evento tivesse intensidade suficiente para ser sentido por uma parte significativa da população (como este), para uma comunicação imediata. Porque não uma interrupção da emissão de rádio e TV com uma mensagem curta e eficaz? “Um sismo de magnitude 5.3 foi sentido às 5:11. Não há perigo de tsunami. Mantenha-se atento e, em caso de réplica, proteja-se: cubra a cabeça e o pescoço. Afaste-se de janelas e objetos que possam cair. Não use elevadores. A Proteção Civil está a acompanhar de perto a situação”.

À tarde, o Presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil (não procurem, não tem um site) sugere, e bem, que é preciso alargar o sistema de avisos por SMS já utilizado para os fogos florestais. Como é que não existe já? E como é que a ANPC não fez já uma campanha para explicar aos cidadãos que usam o sistema Google nos seus telefones, como ativar o alerta de terramoto? Se há um Portugal Chama porque não um Portugal Treme? E não, um exercício uma vez por ano a 14 de novembro, não conta.

À noite, o presidente da ANPC , diz que “a instituição pretende mais investimento na comunicação”. Fico contente, já é altura de levar a comunicação a sério. Espero que a instituição, o IPMA e todas os outros agentes com responsabilidade em prevenção de risco de desastre recebam a devida atenção e o necessário apoio financeiro dos decisores políticos. No entanto, há muito trabalho a fazer, que não se resolve só com mais dinheiro. É essencial que se reconheça que comunicar é um trabalho a tempo inteiro, e não uma tarefa secundária, relegada aos intervalos de outros projetos ou atribuída a quem "escreve ou fala bem", apesar de ser essencial.

É que, tal como o trabalho científico exige formação, conhecimento e dedicação, também a comunicação – também uma ciência - o exige. A comunicação de risco não pode ser apenas reativa e limitar-se a comunicados técnicos pós-evento. Precisa ser planeada com antecedência, coordenada entre diversas entidades, e ser uma prática contínua e consistente. Este trabalho deve envolver uma colaboração estreita entre equipas multidisciplinares que reúnam profissionais da comunicação e cientistas sociais com técnicos de proteção civil e especialistas científicos. Mais, a comunicação tem de cobrir todos os estágios de um evento natural extremo — antes, durante e após. É crucial que os cidadãos saibam como se preparar adequadamente, como reagir de forma segura durante o evento e como proceder após o impacto, especialmente quando as infraestruturas e serviços podem estar comprometidos. Todos os canais devem ser imediatamente ativados – rádio, televisão, internet – com interrupção das emissões para uma mensagem à população que explique o ocorrido e dê indicações sobre o que fazer.

A aposta na educação desde tenra idade é fundamental para automatizar comportamentos de segurança, tais como saber identificar os lugares mais seguros em casa ou para onde ir, se estivermos na rua. Estes reflexos condicionados que salvam vidas e, a longo prazo, diminuem a necessidade de comunicação de emergência. Só assim conseguiremos preparar verdadeiramente a sociedade para lidar com este perigo iminente que irá, sem dúvida, repetir-se.

NewsItem [
pubDate=2024-09-12 08:08:27.0
, url=https://expresso.pt/opiniao/2024-09-12-cronica-de-um-sismo-anunciado-5f7a45e2
, host=expresso.pt
, wordCount=1235
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_09_12_643231219_cronica-de-um-sismo-anunciado
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]