observador.ptObservador - 14 set. 00:09

American way of life: Trump e Kamala num mundo que desistiu de si mesmo

American way of life: Trump e Kamala num mundo que desistiu de si mesmo

Será que europeus, africanos e demais povos americanos não percebem a diferença entre Donald Trump e Kamala Harris, entre republicanos e democratas, que vão a eleições nos EUA a 5 de novembro?

A 5 de novembro próximo os norte-americanos irão a votos para decidirem se terão um presidente ou uma presidenta. Todavia, são os demais povos do mundo que devem questionar-se a si mesmos se querem continuar (Kamala Harris) ou se querem sair (Donald Trump) da infância na relação com os Estados Unidos da América (EUA). É nesse sentido que as eleições presidenciais norte-americanas dizem respeito ao mundo.

Longe da ambição de esgotar o assunto, importa recuar no tempo. O final da segunda guerra mundial (1939-1945) impôs ao mundo circunstâncias inéditas. O modo de vida habitual das sociedades dos mais variados continentes, das modernas às tradicionais, foi invadido e transformado a partir dessa época, e para sempre, por dois manicómios a céu aberto, o sovietic way of life (o modelo exportado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS) e o american way of life (o modelo exportado pelos EUA).

No tempo dos meus pais e avós e incluindo nos confins de África, de 1945 em diante as duas superpotências tornaram-se donas exclusivas do mundo. Dividiram-no entre si de modo muitíssimo mais efetivo e invasivo do que a tentativa anterior, o Tratado de Tordesilhas que, em 1494, também havia dividido o mundo com propósitos idênticos, então entre Portugal e Espanha, mas outros acabaram por furar esse exclusivo (holandeses, britânicos e franceses). Hoje ainda nem estamos nessa fase.

Entre 1945 e 1991, o mundo entrou na segunda vaga de um sistema internacional bipolar, a que chamamos guerra fria, e imaginamo-nos muito diferentes do que aconteceu a partir do final do século XV. Debaixo do Sol não há nada novo. O detalhe é o que aconteceu após 1991, o ano da extinção da URSS. Dois males distintos (URSS e EUA) metamorfosearam-se num só, num mal bem mais poderoso, bem mais caótico, muitíssimo pior que hoje se impõe ao sentido existencial dos diferentes povos do mundo. É isso que está em causa nas eleições nos EUA. O mundo precisa de decidir se aceita continuar a ter dono ou se quer sair da infância rompendo, em definitivo, com o Novo Tratado de Tordesilhas de 1945.

A extinta superpotência URSS foi notável a ensinar as demais sociedades do mundo a converterem-se em sujeitos coletivos dementes, tendo em conta que o sujeito coletivo soviético nunca foi moral ou racional, e assim continua hoje. O povo russo e as suas instituições nunca revelaram remorsos, arrependimento ou sentimentos de culpa por terem gerado o sovietic way of life, modelo de existência coletiva que continua ativo e já foi responsável pela morte de cerca de 100 milhões de pessoas no planeta (mesmo que os números sejam discutíveis, não há paralelo histórico), legado associado a um lastro de miséria sem fim ainda bem vivo.

Essa república celeste, como rotulou Olavo de Carvalho, teve início com a revolução bolchevique (comunista) de 1917, sendo que a URSS propriamente dita apenas foi instituída em 1922. Extinta em 1991, a Rússia (ou Federação Russa) que lhe sucedeu não resolveu nenhuma das loucuras anteriores do seu sujeito coletivo, deixando-as à solta até hoje. É o que explica a invasão tresloucada assassina da Ucrânia, ato normal num povo patológico. No entanto, hoje percebemos que esse povo de grandeza demente pode estar a transformar-se na metade menos danosa para o mundo das duas superpotências, uma vez que se limitou a ter superpoder militar (tinha a bomba atómica) e daí derivava o seu superpoder político e ideológico durante a guerra fria. A URSS não tinha mais nada, ainda que o que possuiu tenha sido mais do que suficiente para destruir os equilíbrios anteriores da existência humana no planeta Terra.

O outro manicómio a céu aberto, a outra superpotência, esta ainda bem resistente, são os EUA. Ou os demais povos do planeta apreendem a limitar severamente a influência externa dos norte-americanos, em particular na zona do Atlântico, ou os ditos irão continuar a destruir a sanidade mental e a viabilidade das sociedades pelo mundo fora com o seu american way of life. É nesse sentido que será muitíssimo mais fácil o sistema internacional passar da infância à idade adulta, isto é, proteger-se dos EUA com a presidência de Donald Trump, republicano nacionalista virado para o seu país, do que com Kamala Harris, democrata globalista, multicultural e progressista (a pretensão totalitária de se romper como o mundo herdado) que não desistirá de querer manter o vício novo-rico de tratar o mundo como se fosse um quintal infantil que se julga no dever e direto de tutelar, através da sua comunicação social e das suas universidades, no campo dos ideais políticos, culturais, identitários, multirraciais à moda americana, de género, migratórias, ambientais, de sentido existencial, por aí adiante.

Independentes desde 1776, os EUA mudaram a sua relação com o mundo no século XX. Com um poder e riqueza acumulados desde o final da grande guerra/primeira guerra mundial (1914-1918), após a segunda guerra mundial (1939-1945) tornaram-se a verdadeira super-superpotência. Nunca um país foi mais poderoso sozinho do que todos os outros juntos na história universal. Os EUA concentraram em si um superpoder militar (foram pioneiros na bomba atómica) e político, porém ultrapassavam em larguíssima escala os soviéticos em superpoder económico e, como consequência, no que é absolutamente decisivo e perdurável no tempo, o superpoder cultural, o que em conjunto gerou um impacto fortíssimo por todo o planeta do tresloucado american way of life (esta característica genética norte-americana poderá ser explicada noutro texto).

Acontece que, em 1991, a superpotência rival, a URSS, foi extinta e, com isso, os EUA ficaram solitários a mandar no mundo. Foi quando acrescentaram à poderosíssima capacidade geoestratégica que possuíam a importação, em força, para os EUA do comunismo soviético. O que passámos a ter, daí em diante, foi um mundo dominado pelo comunismo rico norte-americano. Kamala Harris é o ponto de chegada mais avançado dessa nova versão do comunismo, bem mais ameaçadora do que a soviética, uma vez que se tornou económica e culturalmente a versão comunista mais poderosa de sempre, e que tem destruído sem oposição que se veja as réstias de equilíbrio das sociedades do planeta que sobravam de meados do século XX. Kamala Harris representa a aceleração da história no velho sentido soviético.

Na época da guerra fria (1945-1991), era imperioso marcar diferenças vincadas. Se uma superpotência era uma ditadura comunista economicamente falhada (URSS), a outra obrigava-se a si mesma a ser uma democracia livre economicamente próspera (EUA). Porém, com a extinção da URSS, em 1991, a liberdade e o direito de ser absoluta e radicalmente de esquerda nos EUA, nas variantes socialistas e comunistas cada vez mais academicamente sofisticadas, entrou em rédea solta até se tornar o mais relevante ideal chique entre as elites, bem simbolizado no caso dos atores ou músicos populares norte-americanos bem-sucedidos.

Junte-se a isso o muito poder político, o muito cultural e o muitíssimo poder económico que os norte-americanos já possuíam. Daí o mundo caótico que temos que, em princípio, deveria ter acabado em 1991, mas agravou-se fruto do comunismo rico norte-americano. O velho ideal comunista soviético está a caminho do nirvana no ideal kamaliano, com tudo o que representa.

Quem conheça relativamente bem o que eram a Europa, a África ou a Ásia há 50/60 anos e compare com aquilo em que se transformaram hoje, sempre debaixo do cada vez mais poderoso american way of life – que invadiu de forma avassaladora todas as sociedades do planeta através da televisão, cinema, música, vestuário, hábitos diversos, jornais, rádios, noticiários, universidades, língua inglesa, incluindo outros aspetos bem piores como a associação cultural entre vida urbana, violência e drogas – perceberá, por si mesmo, por que razões o país de Donald Trump e Kamala Harris conseguiram transformar a zona do Atlântico (Américas, Europa e África) de centro estratégico mais importante do mundo fundado por portugueses e espanhóis na época do Tratado de Tordesilhas, em finais do século XV, no que é hoje. Hoje essa é a área do planeta mais caótica, mais malgovernada, com mais violência urbana e suburbana, com populações permanentemente instáveis (ora por causa das descolonizações, ora por causa das migrações), e persistentemente em empobrecimento relativo face a outras regiões do mundo.

Por isso, tem sido o tresloucado american way of life a permitir aos que mais lhe resistiram e resistem, também por estarem geograficamente bem mais longe, como a China (e Hong Kong), Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Tailândia, Malásia, Indonésia, Filipinas, entre outros, incluindo a Índia ali bem perto, isto é, tem sido a Ásia-Pacífico a tornar-se o centro estratégico do mundo, a zona do planeta cada vez mais política, social e economicamente estável, próspera, dinâmica. O american way of life ofereceu-lhes a liderança do mundo.

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