observador.ptObservador - 14 set. 00:08

Economia criativa, artificação e articultura (I)

Economia criativa, artificação e articultura (I)

Neste mundo surpreendente, a arte e a cultura são consideradas mais como atividade e processo do que como objeto e produto.

No século XX e, sobretudo, no século XXI as formas de arte e cultura são cada vez mais diversificadas e surpreendentes. Multiplicam-se os dispositivos tecno-digitais, as instâncias de legitimação e reconhecimento, os mediadores e os promotores, o número de artistas e profissionais envolvidos, os espaços e os eventos para a produção artística e cultural, abrem-se novos conceitos e categorias e mundos sociais até agora inéditos ao universo da criação artística. A artificação é o modo como designamos este processo mais geral de objetivação e instituição da arte e da cultura. A artificação como processo tem a ver com novos materiais, a utilização de técnicas e tecnologias mais inovadoras, profissionais mais qualificados e novas formas de trabalho, novos equipamentos e espaços públicos e culturais, medidas de política mais diferenciadas. Por sua vez, a articultura, como expressão final desse processo, manifesta-se sob múltiplas formas, por exemplo, as artes virtuais, a arte urbana, a arte lixo, a arte ambiente, a arte da paisagem, a arte bruta, a arte, o desporto e a saúde, se quisermos, uma certa esteticização da vida ao quotidiano e, sobretudo, a emergência de novas sociabilidades inesperadas e surpreendentes que compensam a monotonia e melancolia das velhas socializações operadas pela família, o trabalho e o Estado.

Nesta grande transformação as artes digitais e as redes sociais, em especial, projetam-se energicamente sobre a economia criativa que, assim, estende a criação artística e cultural a campos e universos até então inimagináveis. Esta extensão da criação artística, ao mesmo tempo, simbólica e prática, discursiva e material, é acompanhada por uma transfiguração das pessoas, objetos, representações e ações. O objeto torna-se arte, a produtor torna-se artista, a fabricação vira criação, os observadores tornam-se público, ou seja, assistimos a um deslocamento da fronteira entre a não-arte e a arte. A projeção do digital e da rede sobre o criativo provoca uma explosão da criação artística, uma artificação em processo e, com esta fabricação de arte, a desconstrução da categoria arte tal como a conhecíamos nos séculos XIX e XX. Com efeito, em cada esfera de atividade existia uma academia ou corporação de homologação, legitimação e reconhecimento, de regulação e normalização, de barreira entre o artista e o artesão. Uma academia, um mercado, um público, uma crítica, uma estética. Vivemos, doravante, num ambiente pós-estruturalista, uma espécie de metanarrativa do universo da economia tecnodigital e da economia criativa.

Dito isto, o hibridismo e o ruído do tempo presente, não nos permitiram, ainda, tomar decisões políticas firmes a respeito das instituições de arte e cultura, não obstante algumas decisões políticas recentes acerca de alterações no aparelho burocrático-administrativo da arte e da cultura no nosso país. Seja como for, quanto maior a hibridação de processos e procedimentos maior é a criatividade para propor novos conteúdos, produtos e serviços e novas lógicas de rede e colaboração. Por agora, assistimos à emergência de uma lógica plural de múltiplas plataformas de ação coletiva dispersas pelo território e uma explosão de eventos artísticos e culturais que são a expressão de uma engenharia socioinstitucional muito imaginativa e empreendedora levada a cabo por uma multidão de agentes, promotores, técnicos, atores, curadores, empreendedores, municípios, enfim, um verdadeiro ecossistema criativo que suporta e alimenta a economia criativa.

A título de exemplo, no âmbito do Programa de Apoio em Parceria, Arte e Coesão Territorial, foram identificados territórios de menor densidade artística profissional e realçada a necessidade de uma maior atenção para com o território, no que se refere ao desenvolvimento e promoção das políticas públicas para as artes, aliadas ao trabalho académico e de investigação, como motor de correção de assimetrias e desequilíbrios na oferta cultural e artística no país. Foram listados 76 municípios que correspondem à aplicação cumulativa dos critérios definidos, localizados em 19 das 25 NUTS III, distribuídos por todas as regiões NUTS II do país, com exceção da Área Metropolitana de Lisboa. Este apoio resulta de um acordo celebrado entre a DG. Artes e o Observatório Português das Atividades Culturais (OPAC) do Instituto Universitário de Lisboa com o objetivo de fomentar a coesão territorial e corrigir assimetrias regionais no acesso à criação e fruição culturais.

Na sociedade da informação e do conhecimento em que as redes são o agente principal da riqueza dos territórios, as referências artísticas e culturais são fundamentais. Socorro-me dos argumentos expostos no Plano Nacional das Artes.

“O que seria a vida sem música e literatura, arquitetura e design, cinema e pintura, dança e teatro? Compreendemos as artes como parte da vida e não um mundo paralelo, fora da existência ou num âmbito isolado da cultura. Como afirmou Sophia de Mello Breyner Andersen, na intervenção que fez na Assembleia Constituinte, em 2 de setembro de 1975: «(…) a cultura não é um luxo de privilegiados, mas uma necessidade fundamental de todos os homens e de todas as comunidades. A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar, para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça (…)». Nesse sentido, a estética não está distante da ética nem da política. Recuperaremos, com esta certeza, o propósito e esforço de muitos artistas desde os anos 60 e 70 do século XX: cruzar a arte e a vida, revelá-las como uma unidade. Assim, não valorizaremos apenas o objeto artístico, mas o processo criativo e a atitude livre.

Com efeito, numa época marcada pelo utilitarismo mercantilista, a proximidade da escola e das comunidades de aprendizagem com as artes e expressões artísticas é uma forma de promover a criatividade geral e evitar uma lógica instrumental do uso das artes e a sua domesticação. Ou seja, a articulação entre a educação, a cultura e a arte, oferece-nos a oportunidade de usar múltiplas linguagens e diversos modos de expressão pessoal e compreensão do mundo. Ou, ainda, com Sofia de Mello Breyner, Racionalizámos em demasia a educação. É preciso educar e formar para as diversas linguagens, inteligências e modos de comunicar. Nem todos se enquadram na linguagem da racionalidade lógico-verbal. Esses sentem-se excluídos e poderão encontrar nas expressões artísticas o seu meio e o seu elemento, um caminho para a sua realização pessoal e participação no bem comum.

Há, ainda, uma outra faceta muito importante desta intimidade com as artes e a cultura. É o lado da sensibilidade estética e do pensamento crítico, sobretudo, agora que vivemos em tempo de adição digital. Por exemplo, o conhecimento do património cultural e das artes permite-nos uma consciência histórica e inscreve-nos na linha do tempo como parte de uma herança que recebemos e que devemos renovar para o futuro. Desse modo, a promoção de uma educação que valorize o património e as artes reforçará o sentimento de pertença dos cidadãos e ajudará na reconstrução de comunidades historicamente enraizadas. Uma relação permanente com as artes e o património de diferentes culturas, ensina, também, a respeitar a experiência do outro, a ser mais recetivo à sua cultura, à sua interpretação do mundo, promovendo a partilha, o diálogo, o conhecimento de vários critérios de juízo de gosto e a sua evolução histórica.

Tal como se refere na Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, trata-se de “aproximar as diferentes comunidades do território nacional à arte e cultura contemporâneas, contribuindo para o aumento dos públicos e a sua fidelização, de promover a mobilidade dos artistas, curadores e demais atores do meio das artes contemporâneas, de promover programas de apoio à programação em rede e fomentar dinâmicas de inter-relacionamento das práticas artísticas e de investigação nestas áreas, de estimular projetos pluridisciplinares nacionais e internacionais, nomeadamente através de exposições, performances, seminários e conferências, de incentivar programações culturais que possam ser coproduzidas em rede e em itinerância”.

Notas Finais

A terminar, algumas notas finais sobre as noções de artificação e articultura.

Em primeiro lugar, a irreverência de muitas das suas manifestações: muitos desdobramentos multidisciplinares, a desmistificação de certos ambientes e instituições, a desconstrução de alguns estereótipos, a proposta de novas abordagens criativas, a imaginação da máquina comunicacional e da mediação cultural e artística, novos investimentos na democratização do acesso.

Em segundo lugar, a emergência de ecossistemas criativos e a dinâmica sociológica do universo artístico-cultural: os artistas, públicos, os mecenas, os mercados, os colecionadores, os críticos, os museus, os promotores, os curadores, as fundações, as escolas e as instituições de ensino superior, a comunicação e as redes sociais, os curadores, as políticas públicas, a democracia cultural e a democratização do acesso.

Em terceiro lugar, o forte compromisso com a sustentabilidade ambiental e a dinâmica paisagística: de um lado, diferentes perspetivas acerca do carácter existencial e efémero das dinâmicas espaciais, do outro, os horizontes artísticos e a geografia criativa onde as obras de arte são desdobramentos dos lugares, paisagens e territórios.

Em quarto lugar, o compromisso das marcas com a arte, a cultura e as comunidades: sabemos todos que investir em signos distintivos territoriais consolida a imagem da marca, ou seja, ao conquistar um lugar especial na memória e no coração do público-alvo a marca promove a arte e a cultura assim como o branding territorial.

Finalmente, importa não esquecer que a arte é um conceito com efeitos normativos e regulatórios definindo balizas de ordem estética e concetual sobre as quais se funda uma hierarquização simbólica dos bens, ou seja, transição da não-arte para a arte é um processo social de legitimação política complexo operado no universo da academia, os media, o mundo da arte, os críticos, os poderes públicos, os organismos de regulação.

Teremos de voltar mais vezes ao assunto, sobretudo às hiperligações da arte e cultura com as cadeias de valor da economia criativa.

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