Marcelo Lourenço - 13 set. 11:10
O pior chefe do mundo
O pior chefe do mundo
O jovem Marcelo Lourenço, com a autoconfiança inabalável dos 23 anos, começou a desaparecer. Em seu lugar ficou um fiapo cheio de medo, que tentava escrever o que achava que o Wilson iria aprovar.
Então, o jovem acha que o seu chefe é chato?
Acredite: eu tive o pior chefe do mundo.
Vou chamá-lo de “Wilson” para proteger a sua privacidade, uma gentileza que toda a gente merece. Até mesmo o Wilson.
O Wilson foi um rock star da publicidade brasileira nos anos 70 e 80. A agência onde ele trabalhava ganhava todos os prémios, fazia todas as campanhas e o Wilson era celebrado como um génio. Na virada para os anos 90, a carreira dele começou a entrar numa fase esquisita. O Wilson começou a pular de agência em agência e acabou por virar sócio numa pequena agência, com clientes ainda menores.
Foi nessa agência, em São Paulo, que eu entrei como copywriter júnior. Foi graças à dica de um amigo que me avisou: vem cá mostrar a pasta que o copy anterior acaba de ser demitido.
Eu conhecia o nome do Wilson dos anuários de publicidade e das suas famosas campanhas – e eram todas mesmo geniais. O irónico é que até ir trabalhar com ele, o Wilson era um dos meus grandes ídolos.
Desde o primeiro dia, a coisa não correu bem – o Wilson olhava para mim com um ar de nojo que eu não sabia bem de onde vinha. Será que é porque sou do interior? Será que é porque eu sou palmeirense? Tudo que lhe apresentava estava mal, não tinha graça nenhuma, ou acabava com um suspiro e um gesto para que eu me afastasse da cadeira: ele se sentava no meu lugar e, sem uma única palavra, escrevia o texto por mim.
Uma vez, o Wilson agarrou num folha com as minhas propostas de headline, reuniu todo o departamento criativo, leu-as em voz alta e, depois perguntou, muito sério, para toda a gente ouvir: “Você tem a certeza de que é um criativo?”
Verdade seja dita, esse era o estilo de liderança que se praticava no século XX: quanto mais tóxico, melhor. A grosseria, os gritos, tratar toda a gente aos pontapés, era a prova física de que o sujeito era um grande líder. Pelo menos no Brasil, não havia departamento de RH para repreender o sujeito, não havia cancelamento nas redes sociais (não havia nem redes sociais), não havia o termo “burnout” ou a preocupação com a saúde mental das pessoas.
Conviver com pessoas assim era o preço que se pagava para se trabalhar com os melhores. Toda a gente passava pelo mesmo calvário e estávamos todos Ok com isso.
Estava na agência há um mês, a apanhar todos os dias, quando, nem sei como, fiz algo que Wilson não achou completamente detestável: um anúncio de oportunidade para uma marca de automóveis. Naquela galáxia distante, antes do “real-time marketing”, era assim que as marcas reagiam ao mundo ao seu redor: faziam rodapés nos jornais diários. Escrevi um rodapé que fazia uma brincadeira com o Mundial de Futebol e, para minha surpresa, o anúncio foi selecionado por uma revista como um dos melhores anúncios de oportunidade do Mundial.
O que fez a agência inteira me dar os parabéns. Menos o Wilson.
O sucesso do rodapé fez o Wilson tomar duas decisões: contratar-me e subir a fasquia do bullying a um novo patamar.
Todos os dias, religiosamente, ele me chamava de lado e dizia: “garoto, você tem que melhorar, porque, se eu tiver que mandá-lo embora, todas as portas da publicidade vão se fechar para você.” E citava nomes de grandes criativos de São Paulo dizendo “Todos começaram comigo, conheço-os a todos. Quando me perguntarem: o Marcelo é bom? Aguenta a pressão? Vou ter que lhes contar a verdade: que você não foi feito para trabalhar em agência …”
O jovem Marcelo Lourenço, com a autoconfiança inabalável dos 23 anos, começou a desaparecer. Em seu lugar ficou um fiapo cheio de medo, que tentava desesperadamente escrever o que achava que o Wilson iria aprovar.
No primeiro mês, veio a insónia. No segundo, passei a sentir dores de estômago. No terceiro, passei a vomitar na casa de banho da agência.
No final deste terceiro mês, o suplício chegou finalmente ao fim: o Wilson me chamou numa sala e comunicou friamente: “Vou-te mandar embora.” E eu, desmoralizado, quase que pedi desculpas. Afinal a culpa era minha, da minha falta de talento, da minha total falta de “resiliência” – um termo que ainda não estava na moda.
Fui embora no mesmo dia e comecei o périplo do jovem criativo desempregado: agarrei no meu humilde portfólio e comecei a bater nas portas de todas as agências do mercado. Uma das primeiras pessoas a me receber foi um dos criativos que supostamente havia começado com o Wilson, e que, naquela época, era diretor de criação numa grande agência. Pensei que era perda de tempo, provavelmente o Wilson já o teria alertado para a minha colossal falta de talento. Mas, olha, que se lixe: fui mesmo assim.
O diretor criativo me recebeu na sua sala, abriu o meu portfólio e imediatamente reconheceu o rodapé do Mundial. E disse:
“Este anúncio é da agência do Wilson, não é?
Sabe que ele foi o meu primeiro chefe? … ”
E completou: – “Meu primeiro chefe e o único que me mandou embora.”
Fiquei boquiaberto. O diretor criativo continuou a falar, olhos nos olhos, como quem diz algo que, ele sabia, eu precisava muito ouvir.
“Quando estava no auge, o Wilson fez a mesma coisa com todos os jovem redatores do mercado. Contratava-os, humilhava-os durante um mês e depois mandava-os embora. O que ele não esperava é que todos estes criativos iriam se safar e hoje estão em posições de destaque no mercado. E ninguém quer o Wilson por perto”.
E concluiu:
“É por isso que o Wilson não consegue mais trabalhar nas boas agências.”
Então ele perguntou: “quanto tempo você trabalhou com o Wilson?”
E eu: “Três meses”.
Ele apertou a minha mão.
“Parabéns. Aguentou mais do que metade do mercado”.
Nem me posso vangloriar deste recorde – ao longo da minha carreira fui encontrando outros criativos que passaram pelo campo de concentração do Wilson, em diferentes agências. E um deles me confessou que havia conseguido sobreviver seis meses a trabalhar com o sujeito.
Tremo só de pensar.
Chefias tóxicas como o Wilson já eram tóxicas naquela época – só que a minha geração os tolerava. Na altura, eu não sabia, mas hoje sei: um chefe que faz questão de o mandar abaixo só porque sim, não está a criticar o seu trabalho, está apenas a revelar a sua enorme insegurança.
Na sua famosa autobiografia, o grande David Ogilvy já dizia, ainda nos anos 60: “A vida é muito curta para trabalharmos com canalhas”.
É por isso que esta nova geração, com a qual eu discordo profundamente em muitas coisas, pelo menos nisto está a acertar lindamente: na tolerância zero em trabalhar com os “Wilsons” da vida.
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