Observador - 14 set. 00:13
A saga da família Elyas. De Cabul a Portugal
A saga da família Elyas. De Cabul a Portugal
As jóias da Marzia pagaram a fuga do Afeganistão, o CPR, o apoio em Portugal, mas tudo se desmoronaria se uma senhoria civicamente consciente não tivesse preferido ajudar a família.
As notícias e debates sobre refugiados e imigrantes costumam focar-se mais nos impactos políticos e sociais decorrentes desses afluxos e menos nas suas histórias de vida. Para além de categorias sociais, uns e outros são pessoas com vidas únicas e cujo conhecimento é importante para nos ajudar a compreender melhor os seus problemas, a melhor forma de nos relacionarmos mutuamente e como lidar com as diferenças culturais, sociais e económicas, sem abdicarmos de manter a nossa identidade civilizacional.
Recuemos a 13 de agosto de 2021, Cabul, Afshar Hospital, Marzia, casada com Ibrahim, dava à luz o Sadra, nascido de cesariana, ao mesmo tempo que os talibãs começavam a retomar o controlo do país e da cidade e a debandada americana parecia iminente, o que veio a acontecer apenas dois dias depois.
Não será difícil imaginar o sentimento da mãe e do pai, felizes com o nascimento do primeiro filho, selo de uma relação de amor, mas apreensivos com o regresso dos Talibãs ao poder, momento pouco propício para trazer ao mundo um novo ser face à possibilidade de a sociedade onde o tinham concebido e vivido sonhos de paixão e amor ameaçar desmoronar-se perante o avanço de um bando de fanáticos cujos princípios eram e são a negação dos mais elementares princípios e direitos de quem tinha sido educado na sociedade afegã, embora numa mescla caldeada pela influência ocidental, particularmente, americana.
Marzia tinha beneficiado da abertura ocasionada pela invasão ocidental e tinha concluído o 12.º ano de escolaridade e Ibrahim tinha feito um master em Business Administration numa universidade indiana e trabalhava no aeroporto de Cabul para uma empresa americana. No quadro da sociedade afegã a sua origem étnica era mais um problema, ambos são Hazaras, descendentes de um povo com ancestrais turcos e mongóis, segundo alguns historiadores ou mesmo, segundo teorias mais recentes, o mais antigo grupo étnico da região, com uma língua pr��pria, maioritariamente xiitas, num país de maioria sunita, considerados uma espécie de casta inferior e discriminados pelos afegãos fundamentalistas das etnias maioritárias. A ligação profissional de Ibrahim aos americanos era uma espécie de sentença de morte para a família, cuja vida ficou em perigo logo que os Talibãs tomaram o poder; era apenas uma questão de tempo até os identificarem.
Ibrahim relata assim o que ia na sua cabeça naqueles momentos dramáticos, “Foi uma experiência muito dolorosa, é claro que estava feliz e muito entusiasmado por me tornar pai, mas estava muito preocupado com a situação da minha mulher e pensava na segurança da família. Nessa altura, o único pensamento que tinha era como escapar do país. O medo de ser apanhado pelos Talibãs era terrível e insuportável. Entretanto começou o processo de evacuação e a cada dez minutos, um grande e pesado avião americano passava sobre a nossa casa e fazia tremer muito as janelas. Nessa altura, tinha o desejo de estar no avião e fugir do país para sempre. No entanto, não era viável porque Marzia não tinha condições adequadas para a levar para o aeroporto, estava a convalescer da cesariana, e a multidão aglomerava-se nas portas já controladas pelos Talibãs, passavam dia e noite à espera de poderem passar os controlos e os estrangeiros tinham prioridade.”
Face ao perigo iminente só havia uma solução, tentar sair por estrada para um país vizinho e assim fizeram; depois de vários dias de viagem clandestina chegaram a Queta, no Paquistão e por lá ficaram cerca de três semanas até que uma pessoa amiga lhes sugeriu que comprassem um bilhete de avião para Islamabad e tentassem obter lá vistos para ficarem ou viajarem para outro país. Comparam os bilhetes, embora sem garantia de poderem viajar, mas naquele dia tiveram a sorte do seu lado, pois, o controle de passaportes e vistos foi aligeirado e só lhes exigiram os bilhetes.
Conseguiram alojamento nos arredores da capital paquistanesa e pediram vistos de residência, recusados por terem entrado ilegalmente no país. Por intermédio de um colega português que tinham conhecido em Cabul, conseguiram que a embaixada portuguesa se interessasse pelo assunto e após meses conseguiram o visto com o pressuposto de voltarem para o Afeganistão e retornarem legalmente ao Paquistão, tendo conseguido obter um visto humanitário para Portugal.
Ibrahim relata assim esses momentos, “Saímos do Paquistão, voltámos ao Afeganistão, mas só atravessámos a fronteira e voltámos a entrar no Paquistão no mesmo dia. Finalmente, depois de um mês em Islamabad, recebemos os nossos vistos e, no dia 15 de fevereiro de 2022, num dia muito solarengo e bonito, aterrámos em Lisboa. Estávamos muito entusiasmados e radiantes de alegria e felicidade por sairmos daquela situação difícil e chegarmos ao belo e seguro país de Portugal.”
Chegados aqui ficaram num centro de refugiados vários meses e Ibraim conseguiu um posto de trabalho na NAV semelhante ao que tinha em Cabul. Marzia ocupava-se de Sadra. Finalmente, foram alojados num apartamento alugado pelo Conselho Português para os Refugiados (CPR), numa cidade próxima de Lisboa, com a obrigação de no final do período contratualizado o contrato poder ser transferido para a família. Com o marido a trabalhar longe da residência e sem conseguir colocar o bebé numa creche por falta de vaga, Marzia ficou limitada a estar em casa com ele e este a crescer sem qualquer interação com outras pessoas ou crianças, facto que tem tido imensas consequências nefastas no seu desenvolvimento.
Sem querer pôr em causa o modelo de apoio a refugiados, é necessário considerar o conjunto de condições complementares, sem as quais o acolhimento não passa de um paliativo gerador de sofrimento e porta de saída do país por ausência de possibilidades de permanência.
Neste caso, há um elemento positivo, o Ibrahim conseguiu emprego e disponibilizaram-lhe um apartamento, mas quem consegue hoje nos arredores de Lisboa arrendar um apartamento e sustentar uma família apenas com um pequeno ordenado? Como pode uma mãe, seja refugiada, imigrante ou nacional ajudar à economia da família se não encontra uma creche para colocar uma criança?
Findo o período contratual, Ibrahim não conseguia pagar o arrendamento e o CPR lavou as mãos do assunto; é aqui que o processo descarrila, a família vê, de novo, o futuro desabar. Que fazer? Abandonar o país e procurar melhores oportunidades como tantos outros que aqui chegaram e se mudaram para outros países por falta de apoios em Portugal? Seria a hipótese mais razoável não fosse a senhoria aceitar fazer um arrendamento, por mais um ano, muito abaixo do preço de mercado e que a família pudesse pagar, assim se substituindo ao Estado no apoio que a família necessitava. Findo o contrato e face à situação da família foi o contrato renovado nos mesmos termos sob pena de despejar a família. Seria legítimo? Do ponto de vista legal, sem dúvida, mas eticamente seria bastante reprovável. E quantas situações destas não existem todos os dias com nacionais, imigrantes e refugiados? A ética nem sempre se conjuga com negócio.
No próximo ano o Sadra já vai conseguir um lugar numa creche, e bem falta lhe faz, e a Marzia talvez consiga um emprego ou montar um pequeno negócio de comida afegã, pois, é uma excelente cozinheira. O Ibrahim talvez seja promovido na sequência de uma formação técnica da sua área que está a concluir. Se tudo correr bem já poderão alugar uma casa sem ficarem em favor a ninguém.
As jóias da Marzia, dote de casamento, financiaram a fuga do Afeganistão, o CPR o apoio na chegada Portugal e nos primeiros meses, mas tudo se desmoronaria se uma senhoria civicamente consciente não tivesse preferido ajudar a família a rentabilizar o seu negócio.
Num tempo em que alguns demonizam refugiados e imigrantes é importante partilhar as suas histórias, é certo que não devemos esquecer os portugueses que se encontram em situações semelhantes e há milhares, todos devem ser objetos das nossas preocupações, mas não podemos acolher refugiados e depois deixá-los na rua.
A família Elyas que quer ficar em Portugal, é um exemplo dos “novos portugueses” e a sua atribulada experiência a prova de como a iniciativa, a resiliência, as políticas sociais, os bons corações e uma pontinha de sorte podem ajudar a encontrar a felicidade.
*Como é óbvio, este texto só foi possível com a colaboração empenhada da família Elyas.